domingo, 15 de outubro de 2017

Superpopulação relativa ao resgate?


 Expropriações em massa e radicalização da dependência 



 A segunda década do século XXI se encerra, no Brasil, com uma situação que pode ser considerada a pior derrota da classe trabalhadora brasileira desde o golpe civil-militar de 1964. Após o verdadeiro estelionato eleitoral praticado pelo governo Dilma após sua reeleição em 2014, tivemos o impeachment da presidente e a ascensão de Michel Temer à chefia formal da nação. Este governo, por sua vez, não tardou a propor reformas que modificam elementos centrais da vida social e da institucionalidade brasileira. Este texto se propõe a discutir essas reformas no contexto da acumulação capitalista e sua trajetória no Brasil e no mundo.

 I. Vinte anos de austeridade: a Emenda Constitucional 95

 No segundo semestre de 2016, o governo Temer propôs, como medida que supostamente causaria ''equilíbrio fiscal'' no ''longo prazo'', ajudando no controle da trajetória da dívida pública e afirmando ainda que isso ajudaria na retomada do crescimento econômico nacional, o congelamento do gasto público federal em termos reais, isto é: o gasto público federal seria reajustado de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, ou seja: com a inflação. Poderia aumentar em termos nominais (de R$ 2,00 para R$3,50, por exemplo), mas em termos de poder de compra continuaria a mesma coisa. O projeto, claro, foi aprovado no Congresso e na Câmara, a despeito dos avisos de diversos economistas e pesquisadores de que a medida não causará nenhuma retomada do crescimento (certamente atrapalhará, na verdade), que os saldos fiscais negativos podem ser 'corrigidos' através de outras medidas geradoras de receita (como um imposto sobre grandes fortunas), etc. 

 Até para uma criança, penso eu, deve ser óbvio que, caso se congele uma quantidade de recursos que irá servir a uma quantidade crescente de pessoas, o que se ganha é uma precarização progressiva dos bens e/ou serviços oferecidos. Os economistas Pedro Rossi e Esther Dweck -- professores da UNICAMP e da UFRJ, respectivamente -- expuseram de maneira clara neste documento a inevitável trajetória de piora e escasseamento de recursos na prestação dos serviços prestados pelo governo federal, além da impossibilidade de incluir outros serviços sem piorar ainda mais os já em prática e, também, a impossibilidade de exercer uma política de gastos públicos anticíclica como resposta a tendências recessivas na economia.

 De um ponto de vista marxista, como é que podemos analisar a tragédia que é (para a maioria da população brasileira) a EC 95? Em primeiro lugar, penso, temos de pensá-lo sob o ângulo dos seus efeitos sobre a disponibilidade de força de trabalho para o capital. Como sabemos desde 1867, dinheiro e mercadorias não são em si capital, como também não o são meios de produção e de subsistência; para que eles se tornem tal coisa, é preciso que os portadores de dinheiro e meios de produção e de subsistência (na quantidade necessária) encontrem, no mercado, trabalhadores 'livres', isto é, que sejam proprietários das próprias forças de trabalho e, por outro lado, estejam despojados de meios de produção, tendo basicamente apenas suas próprias forças de trabalho para vender em troca de dinheiro com o qual possam comprar meios de subsistência. Em outro texto que não o capítulo 24 do livro primeiro de O Capital, Marx nos diz que 

''O processo que, de um modo ou outro, separou a massa de indivíduos de suas anteriores relações afirmativas com as condições objetivas de trabalho, que negou taus relações e, portanto, transformou tais indivíduos em trabalhadores livres é, também, o mesmo processo que liberou estas condições objetivas de trabalho, potencialmente, de suas ligações prévias com os indivíduos agora delas separados. (Estas condições de trabalho incluem terra, matérias-primas, meios de subsistência, instrumentos de trabalho, dinheiro ou todos estes juntos.)''

Ou seja: o processo que expropria massas humanas e as transforma em massas de trabalhadores (forças de trabalho) disponíveis para o capital é não só um processo que as separa de meios de produção que anteriormente lhes pertenciam, mas de meios que as permitissem obter sua subsistência sem necessitar vender a força de trabalho em troca de um salário, ou seja: sem precisar realizar trabalho excedente, produzir mais-valor, para um capital. Englobando as contribuições de Karl Polanyi, que vê a origem do (que entende por) capitalismo na Inglaterra no fim da lei dos pobres, creio que podemos considerar que a eliminação das garantias legais e/ou da efetiva oferta de bens e serviços públicos que garantem à população uma subsistência independente do mercado (portanto, de uma renda monetária, em geral auferível somente mediante venda da força de trabalho -- para a maioria da população, pelo menos) como também uma expropriação que, se não cria mais populações disponíveis para o capital, mais força de trabalho livre, no mínimo aumenta o grau de dependência das massas proletárias já existentes em relação ao capital. O 'canal' dessa 'operação' não é um mistério: a eliminação ou precarização de bens e serviços públicos fundamentais torna necessário às pessoas recorrer aos serviços privados, os quais entretanto são acessíveis somente pagamento. Dada sua condição proletária, para a maioria da população isto significa a necessidade de vender sua força de trabalho por mais tempo ou de alguma maneira prestar mais trabalho, com o que se pode obter uma renda salarial maior. Mais trabalho realizado para os capitais significa realização de mais trabalho excedente, produção maior de produto excedente e de mais-valia. 

 O outro lado deste acontecimento, como imagino ser facilmente perceptível, é a criação de novos 'espaços de valorização', de acumulação, para o capital: se os serviços públicos não estão prestando, a iniciativa privada pode fornecê-los! Maravilhosa oportunidade de lucros. E o anúncio da intenção de criação dos 'planos de saúde populares' mostra que o capital não está perdendo o tempo de aproveitá-la. Às custas da população consumidora, tal como no caso da privatização de empresas telefônicas e de energia nos anos 90, que forneceu lucros exorbitantes paralelamente a serviços de qualidade inaceitavelmente abaixo da média mundial. 

II. A reforma da Previdência

 Muitos economistas discutem a questão da reforma da Previdência em termos de dificuldades fiscais; da necessidade de uma parcela cada vez maior da renda nacional ser destinada ao pagamento dos benefícios. Alguns, aparentemente acreditando que os impostos financiam o gasto público, afirmam que isso prejudicaria o crescimento da economia; outros parecem concordar com o autor destas linhas e outros adeptos da doutrina cartalista da moeda estatal [1] que um gasto público crescente não é problema para uma economia nacional com um Estado que emite sua própria moeda (ao menos não por si só), mas afirmam que essa situação de gasto público traria -- por um canal de causalidade que realmente não vi ser apresentado de maneira clara -- inflação, déficits em transações correntes e/ou outros efeitos que não são exatamente 'fiscais', mas que ainda sim justificam, para aqueles 'outros', que uma trajetória de crescentes gastos públicos deficitários e endividamento público seria uma 'crise fiscal'. Daí a necessidade, para eles, da reforma da Previdência. 

 De minha parte, creio que Estados que emitem suas próprias moedas não sofrem de restrições orçamentárias -- vejam a nota [1] -- e que, à maneira do princípio da demanda efetiva, os gastos determinam o nível de produção numa economia capitalista. Portanto, acredito que o problema de enfrentar uma transição demográfica tal como aquela que o Brasil está enfrentando é o de aumentar a produtividade social do trabalho, de maneira tal que o trabalho de uma parcela menor da população seja capaz de prover o que uma crescente parcela de idosos necessitará; significa, portanto, ter de transformar a estrutura produtiva da nossa economia. Ou de impedir que essa transição demográfica se efetive, aumentando a taxa de natalidade. Mas, neste caso, é preciso oferecer às mulheres e aos casais justificativas para ter uma natalidade mais alta. E isto pressupõe que a economia seja capaz de gerar subsistência em qualidade para essas famílias. Se nos prendermos ao horizonte da economia capitalista, isto significa a necessidade de prover emprego, renda e bens e serviços públicos na quantidade e qualidade necessárias.

 Mas passemos agora a uma análise desde o ponto de vista utilizado no item anterior, em que tratamos do congelamento dos serviços públicos sob a égide do 'Novo Regime Fiscal' instaurado pela Emenda Constitucional 95. A Previdência, caso não esteja claro para os leitores, é um benefício social que garante à população uma certa subsistência sem que se faça necessária a venda da força de trabalho. Em outras palavras, é uma restrição à plena disponibilidade da força de trabalho para o capital, na medida que permite às pessoas sobreviver sem receber um salário. O aumento da idade mínima e do tempo mínimo de contribuição necessários para a aposentadoria são, assim, meios de aumentar o grau de disponibilidade da força de trabalho para o capital, como efeitos análogos aos expostos no item I. 

 Para análises de alguns economistas com os quais tenho afinidade analítica e política sobre o tema da Previdência, ver [2].

III. A reforma trabalhista

 Que podemos dizer da reforma trabalhista proposta pelo governo Temer e seus aliados, e muito bem aceitas por todo o patronato brasileiro? Posso relatar aqui que nem aqueles economistas que mencionei verem a 'necessidade' de uma reforma da previdência por motivos de riscos 'fiscais' como inflação, déficits em transações correntes etc acharam que esta reforma teria algo de positivo, pelo contrário; foram veementemente contra. Para sair de subjetividades, posso indicar aqui esta nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE. Relações de trabalho profundamente precarizadas, no contexto de uma alta taxa de desemprego, com o consequente grande ganho de poder de barganha para os proprietários dos meios de produção -- os ''job creators'' tão queridos pela teologia liberal do empreendedorismo -- sobre os trabalhadores. 

IV. O horizonte próximo da Terra de Vera Cruz 

 Que podemos esperar para o Brasil nos próximos anos? Exceto para alguns iludidos e outros nem tão verdadeiros otimistas, mas que têm interesse na promoção de ilusões desse tipo, o que parece aguardar a economia capitalista brasileira -- dependente, periférica, subordinada -- é uma relativa estagnação em termos de crescimento do produto interno bruto e da renda per capita, dado o contexto de grande capacidade ociosa na indústria (que leva as empresas a adiarem investimentos), a insegurança de famílias endividadas e afetadas pelo desemprego, um crescimento pouco dinâmico do comércio mundial e, como se não fosse o bastante, o congelamento do gasto público federal e a relutância do Banco Central em alterar sua política de taxa básica de juros. Juntando-se tudo isto tem-se que setor privado, setor externo e setor público apresentam, todos, pouco dinamismo para contribuir ao crescimento econômico brasileiro. O que significa manutenção do trágico nível de desemprego que afeta mais de uma dezena de milhões de brasileiros atualmente.

 O conjunto das reformas (e o reforço da disponibilidade da força de trabalho ao capital), unidas a este alto grau de desemprego, significa também que podemos esperar pelo aumento do grau de exploração da força de trabalho -- isto é, da taxa de mais-valia. Salários reais menores, jornadas em maior extensão e intensidade certamente aguardam a classe trabalhadora brasileira, como se esta já não tivesse de lidar com problemas suficientes. É a velha superexploração da força de trabalho de que nos falava Ruy Mauro Marini.

 Estes salários menores significam um consumo de massas restrito. Com o congelamento dos gastos públicos congelados e dada a relação harmônica entre o padrão de consumo dos mais ricos (cujos bens de consumo típicos são cada vez mais importados ou têm participação crescente de produtos importados em sua composição), podemos esperar um mercado interno crescentemente truncado. As exportações, então, surgem como 'saída' para a venda dos produtos (e para a 'realização' da mais-valia) aqui produzidos. Mas o comércio mundial não vêm apresentando um crescimento lento? Pois é... eis a radicalização da dependência no sentido central posto pelo Marini na Dialética da Dependência de 1973.

 Um país com um número crescente de miseráveis, com crescente concentração de renda e riqueza e com os efeitos prejudiciais da sobrecarga de trabalho atacando a saúde e a vida de cada vez mais trabalhadores: eis o projeto burguês para o Brasil. Felizmente, não é necessário que ele triunfe. A classe trabalhadora organizada, e aqui podemos incluir sua juventude, tem força mais que suficiente para pôr um basta nisso e, melhor ainda, impor um projeto de país que represente os seus interesses, contra os interesses dos latifundiários, da FIESP, da bancocracia e de todos os parasitas representantes destes últimos no Congresso; no (desejado) limite, o projeto socialista de sociedade. Como podemos proceder para tornar realidade a forma e o grau de organização necessários para tanto? Eis uma questão que foge à minha capacidade responder, mas que se impõe de maneira cada vez forte a todos os interessados no progresso da luta dos trabalhadores e na Revolução Brasileira. 


Notas e referências 

[1] A doutrina cartalista da moeda (e dos impostos) nasce basicamente com Knapp e sua 'state theory of money'. Ao longo do século XX, ela evolui com o trabalho de autores como Abba Lerner, William Vickrey e Evsey Domar, economistas que também eram adeptos do 'princípio da demanda efetiva' de Keynes (e Kalecki). Mais recentemente, autores como Matthew Forstater, Pavlina Tcherneva, Randall Wray, Sergio Cesaratto e, no e do Brasil, Franklin Serrano e Felipe Rezende têm buscado atualizar e 'operacionalizar' o aparato analítico da doutrina cartalista. 

[2] https://goo.gl/db9AYc

domingo, 8 de outubro de 2017

Desenvolvimento econômico não-capitalista?


 Sobre uma alternativa histórica de reprodução social da vida material e suas condições, consequências e possibilidades



 Momentos como o que o Brasil vive -- isto é, no aparente fim de uma enorme recessão que elevou a taxa de desemprego de 4.5% para acima de 13% e fez o produto interno bruto (PIB) recuar em mais de 7% em 2 anos -- parecem aumentar e intensificar os debates sobre o ''desenvolvimento econômico'' em sentido popular, isto é, sobre a melhoria do padrão de vida da população e seus condicionantes e consequências. 

 Essa reflexão, entretanto, já há algum tempo parece acontecer sob o horizonte do modo de produção capitalista e, ainda mais, sob os preconceitos e cegueiras particulares do pensamento econômico marginalista (ortodoxo) e da teologia liberal do 'empreendedorismo', sob o peso dos quais a 'imagem' do processo de ''desenvolvimento econômico'' parece ser a de vários jovens 'empreendedores' abrindo mais uma lojinha de açaí com visual rústico e um social media high-tech, quando não solicitações ou imposições à classe trabalhadora a que aceite a redução de salários reais e o aumento e intensificação da jornada de trabalho a fim de aumentar a competitividade da 'indústria nacional', como condição para a manutenção de seus empregos, dentre outras coisas (como consecutivas reformas redutoras dos benefícios da Previdência social). 

 Um debate de qualidade bastante superior -- já livre dos pressupostos e conclusões irrealistas da teoria neoclássica, por exemplo -- é feito pelos economistas estruturalistas e/ou de orientação clássica, ligados àquilo que interpretam como sendo a 'abordagem do excedente' que ligaria Smith e Ricardo a Marx, Quesnay, Petty e outros. Veja-se, por exemplo, este artigo dos professores Franklin Serrano e Carlos Aguiar de Medeiros, ambos do IE-UFRJ. Aqui, põe-se de maneira clara questões como problema de subutilização da capacidade produtiva (isto é, desemprego involuntário e ociosidade da capacidade instalada nas indústrias) que normalmente afeta as economias capitalistas, as diferentes estruturas produtivas associadas a diferentes ramos de produção e suas características (como os diferentes níveis e ganhos de produtividade associados com técnicas produtivas e escalas de produção distintas, em diferentes ramos de produção), o papel central desempenhado por fatores sócio-político-institucionais na determinação da distribuição da renda e da riqueza na sociedade, a restrição externa ao crescimento advinda da escassez de divisas e sua conexão com a especialização produtiva dos países, etc. Entre estes economistas, a discussão sobre as diversas possibilidades de política econômica acontece de maneira muito mais ampla e aberta do que entre ortodoxos e liberais.

 Um nível além neste debate estão, acredito eu, os pesquisadores (em maioria marxistas) que enfatizam a historicidade e transitoriedade do modo de produção capitalista, dando papel central ao fato de que a forma capitalista da produção social implica a subordinação desta à lógica de 'desenvolvimento' do capital (no sentido do processo através do qual o capital acumula, ampliando-se e abarcando cada vez mais regiões geográficas e dimensões da vida humana), assim como às possibilidades de um ''desenvolvimento econômico não-capitalista''.

 Aprofundemo-nos sobre esta última perspectiva. Que significa um ''desenvolvimento econômico não-capitalista'' ou, para fins práticos e de maneira coerente com o projeto político marxista, um ''desenvolvimento econômico socialista'' -- e quais são as suas condições, possibilidades e implicações? Antes de mais nada, é condição fundamental para isto que a propriedade privada dos meios de produção (recursos naturais, máquinas, equipamentos) -- condição básica do modo de produção capitalista -- tenha sido abolida e substituída pela propriedade social, coletiva, dos mesmos. Com este novo regime de propriedade, abre-se aos produtores diretos/trabalhadores -- os verdadeiros produtores -- a possibilidade de apropriarem-se da maior parte da produção; coisa que distingue da situação na maior parte do mundo capitalista e durante a maior parte do tempo de existência deste modo de produção, onde não só houve e há grande desigualdade de renda como também a maior parte desta era e é apropriada pela minoria proprietária.

  Falamos sobre distribuição. E quanto à produção, ou melhor, à composição do produto social e as técnicas produtivas utilizadas, as condições de trabalho envolvidas etc?  Em primeiro lugar, a propriedade social dos meios de produção permitem que esta já não ocorra sob as decisões particulares de produtores privados e formalmente independentes entre si -- que levam o produto de seus trabalhos (ou das pessoas sob seu comando) ao mercado para trocá-lo por outros produtos ou por dinheiro --, mas sim como produção submetida a um plano social, portanto realizada por um organismo produtivo cujas partes (os indivíduos, as unidades produtivas) estão diretamente conectadas e não apenas indiretamente, via mercado. Isto significa que a composição da produção pode e deve se dar através da verificação das necessidades e demandas da população. Um exemplo: a população deseja um aumento da oferta de alimentos e da qualidade dos mesmos, então o organismo social produtivo -- que é composto por boa parte dessas mesmas pessoas -- aloca recursos humanos, técnicos e naturais de maneira a aumentar a produção, bem como utiliza técnicas produtivas e tecnologias diferentes para aumentar a qualidade do produto desde sua produção até o armazenamento, passando pelo transporte, até que chegue às mãos dos consumidores finais. O mesmo pode ser dito de móveis, roupas, videogames, máquinas hospitalares, instrumentos musicais...

 E quanto às técnicas produtivas utilizadas e às condições de trabalho envolvidas? A forma socialista da produção implica que esta ocorra sob a finalidade de satisfação das necessidades e demandas da população, e não como um cálculo de rentabilidade visando maximizar lucro. Assim, enquanto uma empresa capitalista, se tiver que escolher entre uma determinada técnica produtiva que poupa trabalho (''labor-saving'') e outra mais ''trabalho-intensiva'', escolherá aquela que é mais barata, as unidades produtivas socializadas podem e devem ter critérios de escolha de técnicas ligados ao bem-estar das pessoas (tanto enquanto produtores quanto como consumidores) e à sustentabilidade ecológica, dentre outras coisas. Assim, por exemplo, se postas sob a necessidade de escolher entre uma técnica que permita a redução da jornada de trabalho e outra que não o faz, sendo de resto bastante semelhantes, podem e devem escolher a primeira. O controle direto dos produtores sobre os meios de produção também permite que a jornada de trabalho e o ritmo do mesmo sejam determinados não sob o império de metas quantitativas de produção ligadas ao imperativo de transformar uma quantidade abstrata em uma quantidade maior (produzir mais para vender mais para lucrar mais, o que faz parte da natureza do capital), mas sim, por exemplo, de modo a minimizar a quantidade de esforço e desgaste físico necessários para um dado plano de metas de produção ligado às necessidades concretas da população; assim, para um dado plano de metas ou conjunto de necessidades, um aumento da produtividade do trabalho propiciado pelo descobrimento de alguma nova técnica produtiva permite a redução da jornada e/ou intensidade do trabalho, aumentando o tempo livre dos produtores.

 Há muitas coisas que ainda podemos falar sobre as possibilidades da produção socialista, planejada. Exemplos: o plano social pode incluir a construção de mais estradas e/ou de vias de transporte de produtos via bacias hidrográficas, facilitando o acesso de algumas populações a eles; a distribuição geográfica das unidades produtivas e da riqueza enquanto acesso concreto a bens e serviços pode ser ''igualizada'', substituindo o grande desequilíbrio regional que caracteriza atualmente o Brasil e tantos outros países capitalistas; as cidades podem ser planejadas de maneira a terem vários 'núcleos' com escolas, hospitais, áreas de lazer, de maneira que as pessoas não tenham de realizar longos trajetos para ter acessos a esses serviços num local que as concentre geograficamente; etc.

 Isto é apenas uma nota introdutória, um rascunho para um debate sobre as grandes possibilidades de melhoria dos padrões de vida da maioria da população que o socialismo pode fazer e que a meu ver pode desempenhar um papel interessante na atividade de agitação e propaganda e na atração de corações e mentes da classe trabalhadora para o projeto socialista.


P. S. Sugiro, além do supracitado artigo da dupla Franklin Serrano e Carlos Medeiros, a leitura deste, deste e deste artigos.
P. P. S. Eu não afirmei no texto e não sei se ficou claro, então vou explicitar aqui: no sistema de propriedade social e planejamento da produção conforme as necessidades da sociedade, não há o fenômeno do desemprego involuntário nem as suas consequências, que tanto horror causam a muita gente no mundo capitalista (particularmente após o fim das políticas keynesianas de pleno emprego do 2º pós-guerra). Isto porque, em primeiro lugar, a força de trabalho não é mais uma mercadoria, dado que os produtores (os trabalhadores) têm acesso aos meios de produção, e em segundo lugar porque mesmo aqueles que não estiverem trabalhando (como crianças, idosos, algumas pessoas portadoras de deficiência física ou temporariamente incapacitadas de trabalhar por motivo de acidente ou doença etc.) podem ter a satisfação de suas necessidades garantida através do plano social de produção, distribuição, troca e consumo da riqueza produzida pelo trabalho do organismo social.