domingo, 24 de janeiro de 2016

Reinaldo Carcanholo: apontamentos sobre a ridícula ideia de ''capital humano''

O texto a seguir é um apêndice do artigo ''A grande depressão do século XXI e a riqueza fictícia''

Reinaldo Carcanholo (falecido em maio de 2013) foi professor do curso de economia da UFES, vice-presidente da SEPLA e um dos maiores nomes da teoria econômica marxista e do pensamento crítico no Brasil. 

...Como dissemos, a ideia de capital humano deriva da mesma ilusão provocada pelo capital a juros e que dá nascimento ao capital ilusório. Só que aqui se trata de uma simples e pura mistificação produzida e mantida pelo pensamento neoliberal.

 Em um excelente artigo de Alain Bihr denominado “A fraude do conceito de capital humano”, publicado pelo Le Monde Diplomatique (Brasil) de 5 de dezembro de 2007, o autor identifica a origem da ideia:

“Devemos a noção de ‘capital humano’ ao economista americano Theodor W. Schultz, que a inventou nos anos 50. Ela foi popularizada por seu colega e compatriota Gary Becker.”


  E o autor continua, explicitando quando se difundiu:

“Por muito tempo confinada ao círculo estreito dos economistas neoclássicos, a noção de ‘capital humano’ se difundiu a partir dos anos 80 para se tornar um dos conceitos favoritos dos teóricos dos ‘recursos humanos’ e das agências de recrutamento. Ela ocupa hoje um lugar privilegiado no vocabulário dos políticos...”


  O sítio http://pt.goldenmap.com/Capital_humano é mais explícito sobre o tema e mantém, também, uma atitude crítica sobre a ideia:

 “O conceito de capital humano tem origem durante a década de 1950, nos estudos de Theodore W. Schultz, (1902 - 1998), que dividiu o prêmio Nobel de Economia de 1979 com Sir Arthur Lewis. O conceito foi desenvolvido e popularizado por Gary Becker e retomado, nos anos 1980, pelos organismos multilaterais mais diretamente vinculados ao pensamento neoliberal, na área educacional, no contexto das demandas resultantes da reestruturação produtiva. Deriva dos conceitos de capital fixo (maquinaria) e capital variável (salários). O "capital humano" (capital incorporado aos seres humanos, especialmente na forma de saúde e educação) seria o componente explicativo fundamental do desenvolvimento econômico desigual entre países”.


  Faz uma referência a passagem d’O Capital que, embora mal citada e não localizada, por ser interessante vale a pensa registrar:

 "Economistas apologéticos (...) dizem: (...) a sua (do trabalhador) força de trabalho é, portanto, ela mesma, seu capital em forma-mercadoria, da qual lhe flui continuamente seu rendimento. De fato, a força de trabalho é a sua (do trabalhador) propriedade (reprodutiva, que sempre se renova), e não o seu capital. É a única mercadoria que ele pode e tem que vender continuamente para viver, e que atua como capital variável apenas nas mãos do comprador, o capitalista. Que um homem seja continuamente compelido a vender sua força de trabalho, isto é, ele mesmo, para outro homem, prova, segundo esses economistas, que ele é um capitalista, porque constantemente tem "mercadorias" para vender. Nesse sentido, um escravo também é um capitalista, embora ele seja vendido por uma outra pessoa, mas sempre como mercadoria; pois é da natureza dessa mercadoria, o trabalho escravo, que seu comprador não só a faça trabalhar de novo a cada dia mas também lhe dê os meios de subsistência que a capacitam a trabalhar de novo e sempre." (MARX, Karl . O Capital, vol. II, capítulo XX, seção X)


  Muito sugestivo: até os escravos possuíam ou possuem capital humano. Melhor até que essa passagem, encontra-se uma no livro III d’O Capital, cap. XXIX, em que fica clara a relação entre a ridícula ideia de capital humano e a ilusão provocada pelo capital a juros, ilusão essa que origina o capital ilusório. Além disso, localiza a origem da ideia (embora não da expressão “capital humano”) não depois do século XVII(!):

 “Chega-se a considerar o salário como capital que rende juro e, em conseqüência, a força de trabalho como capital que rende esse juro ... O absurdo da concepção capitalista atinge aí o apogeu: em vez de explicar a valorização do capital pela exploração do trabalho, ao contrário, explica a produtividade da força de trabalho com a circunstância de possuir essa força o dom místico de ser capital que produz juro. Essa ideia esteve em moda na segunda metade do século XVII (Petty, por exemplo), mas hoje em dia é utilizada ainda com seriedade imperturbável pelos economistas vulgares e principalmente pelos estatísticos alemães. Duas circunstância desagradáveis (que pena!) lançam por terra essa concepção insensata: primeiro, o trabalhador tem de trabalhar para receber esse juro e, segundo, não pode mediante transferência converter em dinheiro o valor-capital da força de trabalho.” (Marx, livro III, p. 536)


  Marx chegaria a se surpreender mais ainda se tivesse a oportunidade de saber que um certo senhor teria reinventado a ideia no século XX, ideia que existia desde o XVI(!), e que até hoje é repetida por economistas medíocres e por outros também. Agora ganhou status de conceito ou categoria: capital humano! Aparece no arsenal dos vocábulos de todos aqueles que querem impressionar, “com seriedade imperturbável”, os ouvintes que se supõem mais ignorantes.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Como devemos tratar a obra de Marx, ou de como o ''marxismo'' deve ser ciência e não religião


''A obra de Marx não é um 'texto sagrado', e uma citação de Marx não constitui uma prova.''

 Anselm Jappe, ''O mundo não é uma mercadoria''. In: ___. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006.

''O imenso respeito intelectual e político que devemos a Marx e Engels é incompatível com qualquer incomplacência para com eles. Os seus erros -- tantas vezes mais esclarecedores que as verdades de outros -- não devem ser eludidos, mas localizados e superados.''

 Perry Anderson, ''O Estado absolutista no Ocidente'', nota nº 12. In:___. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004.

''[...] though Marx is more sympathetic, in may ways, to a modern mind, than the orthodox economists, there's no need to turn him, as many seek to do, in a inspired prophet. He regared himself as a serious thinker, and it is as serious thinker that i have endeavoured to treat him [...]''

 Joan Robinson, ''Introduction'', In: ___. An essay on Marxian economics (Macmillan, 1942)

sábado, 9 de janeiro de 2016

Carlos Pereyra: ''Duas aproximações ao problema da dialética'' (em espanhol)




''Panegiristas y detractores de la dialéctica han contribuido a veces más a confundir que a esclarecer límites y posibilidades del método en cuestión. Los primeros, por ejemplo, han difundido con amplitud el lugar común según el cual la dialéctica es una teoría que describe las leyes más generales del movimiento de todas las cosas y proporciona, por tanto, un método de aplicación universal para el conocimiento de la realidad. No menos extendida está la versión de que la dialéctica es una forma superior de la lógica, capaz de aprehender las peculiaridades de la cosa misma allí donde la lógica formal fracasa de modo irremisible por su aceptación del principio de no contradicción. La identificación hegeliana de lógica y ontología se encuentra presente en buena parte de los discursos formulados en la perspectiva del materialismo histórico, por lo que se pasa de sostener una hipótesis ontológica como la de que “todas las cosas tienen contradicciones internas que provocan su movimiento y desarrollo”, a sostener que asumir esa hipótesis obliga a compremeterse con una lógica excluyente del principio de no contradicción. Frente a esas versiones tan difundidas, habría que empezar por afirmar que 'la dialéctica no es en manera alguna una lógica y no hay un método general de aplicación universal'.''

Veja o resto aqui.

PS. O artigo é parte de uma edição da revista Cuadernos Politicos, lançada entre 1974 e 1990 e organizada, dentre outros(as), por Ruy Mauro Marini. A UNAM -- Universidad Autónoma de Mexico, disponibilizou recentemente todas as edições da mesma, que podem ser conferidas nesse link.   

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Conflito distributivo: a política por detrás das políticas






 Até recentemente, as autoridades brasileiras fizeram uso de uma retórica agora comum para justificar o arsenal de medidas de austeridade que efetivamente descarrilharam a economia brasileira. Estas vieram sob o pretexto do tradicional discurso ''a crise internacional me obrigou a fazer isso'', ou pela recorrência à noção de que esforços fiscais (e, neste caso, também monetários e creditícios) são o único caminho para garantir o crescimento econômico -- o bem conhecido argumento da ''contração fiscal expansionista'', ou CFE.

 Como se vê, a não-declarada finalidade do conjunto de políticas correntemente implantadas no Brasil é enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores por meio da redução dos salários reais e pelo acréscimo do desemprego. Diferentemente das economias ocidentais mais avançadas, o conjunto institucional que protege os interesses dos trabalhadores no Brasil é relativamente fraco, e falta-lhe peso orgânico e político-partidário.

 Logo, aumentar as taxas de desempregados tem o benefício adicional de efetivamente reduzir a resistência dos trabalhadores à introdução das medidas neoliberais, necessárias para reverter as vantagens adquiridas pelos trabalhadores na década passada, vistas como excessivas.

 Tão recentemente quanto em junho de 2015, o [ex-]ministro da fazenda Joaquim Levy disse a uma plateia de executivos, na presença das imprensas nacional e internacional, que era tempo de ''repensar o país'' e ''abandonar a retórica e lidar com algumas realidades''. Seu objetivo declarado foi precisamente exposto: ''nós vamos reverter essa redução da oferta de trabalho''. De acordo com ele, havia pessoas que anteriormente ''não queriam entrar no mercado de trabalho, e que agora terão de procurar por empregos'', portanto provocando um aumento na oferta de trabalho. Como corolário, a audiência foi informada de que ''não pode haver crescimento econômico sem um aumento na oferta de trabalho''.

 O interessante é que, ao dizer isto, o ministro cometeu um erro bastante rude em termos de teoria econômica. Mesmo de acordo com os dogmas da teoria ortodoxa e neoclássica do crescimento à qual ele alude, é o pleno emprego que geraria o crescimento e não o desemprego, que, por definição, nada produz.

 Politicamente, porém, a análise do Sr. Levy foi bastante precisa, e até mesmo brusca. O poder de barganha da força de trabalho brasileira foi, talvez inadvertidamente, muito acrescida por um mercado de trabalho apertado entre 2006 e 2014, tanto quanto pelas medidas introduzidas pelo governo liderado pelo PT naquele período. O desemprego caiu marcadamente e os salários reais no setor formal cresceram continuamente, numa média estável de 3% ao ano, começando em 2006. Mais relevante ainda, tendo alcançado um baixa máxima em 2004, a massa salarial em % do PIB tem se recuperado desde então.

 Depois de muita pressão política por parte da iniciativa privada (apesar dos lucros em máximas-recorde obtidos na década passada) e, ainda mais sonoramente, dos extensos grupos midiáticos e partidos de oposição, em 2015 o governo liderado pelo PT começou a agir no sentido de reverter este estado de coisas por meio de medidas progressivamente brutais.

 A rápida geração de desemprego por meio de medidas radicais de austeridade, assim como por mudanças nítidas na distribuição de renda para além dos salários, criaram um clima político em que é possível reduzir substancialmente o tamanho e a importância do Estado brasileiro na economia como um todo. Isso, por sua vez, está preparado o caminho para um decréscimo dos ganhos distributivos, direitos trabalhistas e benefícios sociais iniciados em 2003, alguns dos quais já estão sendo simultaneamente desmantelados ou significativamente reduzidos.

 Muitos militantes petistas, tanto quanto movimentos sociais e sindicatos, foram claramente pegos de surpresa por este repentino e inequívoco endorso de uma agenda neoliberal a que eles há muito se opuseram, e um que afeta sua própria base proletária o máximo possível.

 Essa reação, se compreensível, é um tanto quanto baseada em wishful thinking. Uma análise empírica mais acurada de sua história de 30 anos demonstra que o PT tem uma consolidada tradição de fugir ao conflito direto com as classes proprietárias e conservadoras do país uma vez estando no poder, quer no nível federal, quer no municipal ou estadual. Ao mesmo tempo em que sinceramente aparenta desejar mudança social, a elite governante do partido têm há muito sido dirigida por uma credo de busca de consenso segundo o qual não há situação na qual um compromisso que evite perturbar a elite endinheirada do Brasil, enquanto simultaneamente melhore a condição da majoritária classe subalterna do país, não pode ser alcançado.

 Esse peculiarmente cordial ramo da filosofia política pode parecer forçar a credulidade quando se leva em conta que o Brasil é o único país que se encontra simultaneamente no ranking das 20 maiores economias e no das 20 piores distribuições de renda do mundo. Apesar disso, essa quadratura política do círculo pareceu possível até 2011, a nível federal, no despertar de uma prosperidade no comércio externo, acompanhada de um surto tanto no consumo doméstico quanto nos níveis de lucros que se seguiram à abertura inicial das comportas da ''inclusão social''.

 Quando os esporádicos conflitos em relação à distribuição de renda na arena política tornaram-se mais difundidos, e a crítica ideológica deu lugar à indisfarçável luta de classes, o anterior humor auto-aprovativo do alto escalão governante do partido tornou-se um de desconfiança e alarme. Confrontados com um novo Congresso hostil depois de ganhar as eleições presidenciais de 2014 e afligidos por sua pesada dependência para com o financiamento por parte de grandes empresas privadas e bancos, os jeitos flexíveis e credos apaziguadores dos líderes do PT transformaram-se numa raramente vista hierárquica capitulação política.

sábado, 2 de janeiro de 2016

As estranhas e mal-compreendidas causas da crise brasileira



''(...) as razões para a austeridade não estão de fato conectadas com um medo de descumprimento com as obrigações financeiras domésticas. A austeridade pode ser usada para resolver um problema de conta-corrente -- o que não é o caso do Brasil, como vimos -- ou pode ser uma maneira de levar a uma recessão, aumentando o desemprego e reduzindo o poder de barganha dos trabalhadores, como Kalecki notara muito tempo atrás. É uma forma de disciplinar a classe trabalhadora. E é o que está ocorrendo no Brasil.''


 O Brasil está uma bagunça. A economia está colapsando, com uma queda estimada de 3.5% do PIB este ano (talvez pior) [lembrando: o texto foi escrito no final de 2015], e a inflação têm acelerado para um nível de dois dígitos, bem acima do que costumava ser o limite superior da banda da meta de inflação. Pior, politicamente o país está paralisado, com um processo de impeachment em curso e sem um resultado previsível.

 A visão convencional está como que dividida sobre por que isso aconteceu. Alguns sugerem que foi o desaceleramento da economia internacional e o declínio dos preços das commodities que forçaram o Brasil a fazer o ajuste (por exemplo, essa seria a narrativa de Simon Romero no NY Times, se você adicionar corrupção à mistura; mais sobre isso abaixo). A alternativa é mais explícita sobre os efeitos negativos das políticas do Partido dos Trabalhadores, sugerindo que eles reduziram a confiança e, consequentemente, o investimento (algo nessa linha pode ser visto nas páginas de opiniões de Wall Street; veja aqui, inscrição exigida).

 No versão da variação de confiança/política o argumento é que o governo gastou demais, particularmente no segundo mandato de Lula e ainda mais no período posterior à crise financeira global. Houve uma tentativa de reduzir os gastos fiscais com a eleição de Dilma Roussef (nessa interpretação disfarçando os gastos com contabilidade criativa; mais sobre isso abaixo), mas isso fora temporário, e imediatamente após a reeleição de Dilma os problemas fiscais tornaram-se insustentáveis e exigiram ajuste.

 Ambas as narrativas são falhas. Primeiro, mesmo a economia internacional crescendo lentamente, e algumas economias periféricas como a China também estão desacelerando, o Brasil não tem nenhum problema externo claro. A conta-corrente está negativa, mas o país não está sob perigo de uma crise externa ou descumprimento de suas obrigações estrangeiras, em particular porque está assentado num enorme monte de reservas internacionais. Como eu notei anteriormente, Standard & Poor's na verdade concordam com essa visão na justificativa que eles usaram para reduzir o status de classificação do Brasil (semana passada, a Fitch seguiu a onda e também reduziu o status de classificação da dívida brasileira), uma vez que eles não citam a situação externa como um problema.

 Portanto a noção de que o Brasil necessitava de um ajuste fiscal -- para lançar o país na recessão, reduzir as importações e resolver os [supostos] problemas externos -- parece sem fundamentos. O mesmo é verdadeiro para a noção de que uma profunda desvalorização do Real era necessária. De fato, a depreciação só tem contribuído para a aceleração da inflação, sem impacto nas contas externas. As exportações estão paradas (uma vez que a economia global não está indo bem), e como tal estão as importações (dada a recessão). A inflação também terá um impacto significativo sobre os salários reais, e vai piorar a distribuição de renda (que havia melhorado durante a gestão petista).

 Mas e quanto aos problemas internos? (Tanto a S&P como a Fitch de fato puseram a culpa nos problemas fiscais.) Esse argumento é ainda pior, e tem alguns sérios problemas lógicos. Note que ele sugere que déficits fiscais na moeda nacional podem ser insustentáveis e que a inflação resulta de excesso de demanda associado a gasto em demasia por parte do governo. Já discuti isso várias vezes neste blog, portanto não vou me aprofundar muito nisso.

 Não há como um país poder ser incapaz de pagar dívidas em sua própria moeda. Por definição você pode sempre imprimir dinheiro. E sim, a inflação pode se seguir disso, mas não porque imprimir dinheiro causa inflação. Esse argumento implica que a economia está sempre, e a brasileira certamente não está, em pleno emprego [dos fatores de produção, ou no mínimo do fator trabalho]. Consequentemente, a impressão de dinheiro pode levar a mais gastos e mais produção, não inflação. Entretanto, outro efeito pode ser um medo de depreciação da moeda e uma corrida por dólares, e a depreciação pode ter um efeito inflacionário.

 Em outras palavras, as razões para a austeridade não estão de fato conectadas com um medo de descumprimento com as obrigações financeiras domésticas. A austeridade pode ser usada para resolver um problema de conta-corrente -- o que não é o caso do Brasil, como vimos -- ou pode ser uma maneira de levar a uma recessão, aumentando o desemprego e reduzindo o poder de barganha dos trabalhadores, como Kalecki notara muito tempo atrás. É uma forma de disciplinar a classe trabalhadora. E é o que está ocorrendo no Brasil (sobre o desaceleramento da economia seguindo essencialmente o mesmo argumento, veja Serrano e Summa).

 O governo na verdade poderia gastar e pôr-se fora da recessão (não se preocupe, ele não irá). E assim, uma vez que a renda responde ao nível de atividade econômica, o panorama fiscal melhoraria. Mas então, se a crise brasileira não é externa e nem fiscal, o que a causou? Trata-se de uma auto-imposta crise política. A pergunta relevante é por que de essa política ser implementada por um governo de centro-esquerda [aqui acho que talvez Vernengo tenha posto a si próprio um problema desnecessário; talvez o governo petista esteja um pouco mais à direita do espectro político do que ele pensa...].

 Tem-se primeiro de lembrar que em certos nível o PT sempre aceitou o pensamento convencional quando se tratava de assuntos fiscais. Lula famosamente disse em sua Carta aos Brasileiros que ele desejava ''equilíbrio fiscal para estar apto a crescer'', sugerindo que ele havia incorporado a noção de ajuste fiscal expansionista. Porém, com toda a justiça, havia algum dissenso dentro do partido, e com o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e, em particular, depois da crise de 2008, pareceu que o PT estava pronto para usar o gasto governamental para promover o desenvolvimento econômico. Então por que depois de ganhar a apertada eleição do ano passado, na qual Dilma desacreditou o programa econômico do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), aceitou-o ela essencialmente?

 Está claro que parte do governo passou a defender que a expansão fiscal havia ido longe demais, e que as demandas dos trabalhadores e os salários reais estavam altos demais. A pressão política certamente foi sentida, e em adição o assunto incômodo da corrupção também desempenho um papel. Além disso, por algum motivo a Nova Matriz Econômica (que, em minha visão -- posso estar errado -- era bem convencional), tentando reduzir a taxa de juros e promover um moderado ajuste fiscal, foi vista como uma falha pelos motivos errados. As taxas de juros mais baixas e a moeda mais depreciada deveriam ter estimulado o crescimento, enquanto o ajuste deveria ter controlado os preços. Obviamente essa ideia neo-desenvolvimentista falhou, uma vez que a depreciação levou à inflação (que não era alta, precisamente no limite da meta de 6.5%) e a economia desacelerou.

 Entretanto, a lição sugerida desse experimento é de que o governo perdeu credibilidade, uma vez que o ajuste fiscal não foi forte o suficiente e os atrasos no pagamentos aos bancos públicos(as infames ''pedaladas''), em particular ao BNDES, estão pro detrás da crise. Isto é, a falta de confiança reduziu o investimento doméstico e abaixou o crescimento. Um terrível efeito colateral da aceitação dessa visão  é que agora o uso político pela oposição dos atrasos de pagamentos aos bancos públicos, algo que não era novo, nos procedimentos do impeachment criará um legado permanente, reduzindo a capacidade dos governos futuros tentando adotar políticas expansionistas.

 Por fim, uma palavrinha sobre corrupção. Sim, há um significante escândalo de corrupção no Brasil, e antes que qualquer um reclame, eu espero que peguem todo mundo e que as pessoas que forem provadas culpadas acabem por pagar o preço -- na cadeia, presumivelmente; aliás, se eles tivessem algo quanto à presidente isso já teria sido usado para o impeachment, mais que um tema burocrático de orçamento. Eu só quero denotar que não há evidência (eu mesmo não vi nenhuma confiável, pelo menos) que a corrupção está pior agora do que com os militares nos anos 60 e 70, quando a maior parte das conexões com as grandes empresas empreiteiras começaram. Além disso, o problema de a Petrobrás estar sob investigação vai pelo menos de volta ao governo de FHC. E a corrupção não é um problema da coalização governamental somente. Membros da oposição também estão envolvidos, e um impeachment na verdade traria ao poder um dos mais evidentemente corruptos políticos do país. Nesse sentido, se a corrupção não mudou, dificilmente pode ser concebida como a causadora da situação econômica. A corrupção é somente um dos elementos usados pelos grupos políticos para obter vantagens.

 Os problemas de corrupção que mais importam no Brasil estão associados ao fato de que alguém não pode governar sem basicamente pagar favores políticos no Congresso, e isso significa pagar a principal força política lá, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). É bem sabido, por exemplo, que Cardoso pagou pela mudança na Constituição que permitiu sua reeleição, para citar um exemplo que é antigo o suficiente, e não conectado ao atual governo. Mas o país cresceu significativamente no passado, apesar da corrupção.

 E, pelo jeito, a substituição do ministro da Fazenda, com a indicação de meu ex-colega de classe (em todos os níveis: graduação, mestrado e doutorado) Nelson Barbosa, não irá levar a nenhuma mudança significativa na política. O ajuste fiscal continuará, como ele claramente anunciou.