quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Homofobia nas escolas: um problema de todos

por Rogério Diniz Junqueira*, como introdução à coletânea de artigos ''Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas'' (Brasília: MEC, UNESCO, 2009)


''Todo preconceito impede a autonomia [do ser humano], ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, consequentemente, estreitar a margem geral de alternativa do indivíduo.'' - Agnes Heller (1992: 59)

Escola e reprodução da heteronormatividade

 Diante do anseio de construirmos uma sociedade e uma escola mais justas, solidárias, livres de preconceito e discriminação, é necessário identificar e enfrentar as dificuldades que temos tido para promover os direitos humanos e, especialmente, problematizar, desestabilizar e subverter a homofobia. São dificuldades que se tramam e se alimentam, radicadas em nossas realidades sociais, culturais, institucionais, históricas e em cada nível da experiência cotidiana. Elas, inclusive, se referem a incompreensões acerca da homofobia e de seus efeitos e produzem ulteriores obstáculos para a sua compreensão como problema merecedor da atenção das políticas públicas.


 Ao mesmo tempo em que nós, profissionais da educação, estamos conscientes de que nosso trabalho se relaciona com o quadro dos direitos humanos e pode contribuir para ampliar os seus horizontes, precisamos também reter que estamos envolvidos na tessitura de uma trama em que sexismo, homofobia e racismo produzem efeitos e que, apesar de nossas intenções, terminamos muitas vezes por promover sua perpetuação. 

 Teríamos que nos perguntar como nós que clamamos por justiça, pelo fim de preconceitos e violência estamos, mesmo sem saber, envolvidos com aquilo contra o que procuramos lutar. Não podemos perder de vista que intervenções centradas, única ou principalmente, em nossas boas intenções pedagógicas ou no poder genericamente redentor da educação costumam contribuir para reproduzir o quadro de opressão contra o qual nos batemos. Em outras palavras, com frequência, colocamos nossas boas intenções e nossa confiança em uma educação a serviço de um sistema sexista e heterossexista de dominação que deve justamente a essas intenções e confiança uma parte significativa de seu poder de conservação.

 Ora, desde os estudos de Bourdieu e Passeron e uma numerosa série de outros, as visões encantadas acerca do papel transformador e redentor da escola têm sido fortemente desmistificadas. Temos visto consolidar-se uma visão segundo a qual a escola não apenas transmite ou constrói conhecimento, mas o faz reproduzindo padrões sociais, perpetuando concepções, valores e clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus corpos e suas identidades) [1], legitimando relações de poder, hierarquias e processos de acumulação. Dar-se conta de que o campo da educação se constituiu historicamente como um espaço disciplinador e normalizador é um passo decisivo para se caminhar rumo à desestabilização de suas lógicas e compromissos.

 Ao longo de sua história, a escola brasileira estruturou-se a partir de pressupostos fortemente tributários de um conjunto dinâmico de valores, normas e crenças responsável por reduzir à figura do “outro” (considerado “estranho”, “inferior”, “pecador”, “doente”, “pervertido”, “criminoso” ou “contagioso”) todos aqueles e aquelas que não se sintonizassem com o único componente valorizado pela heteronormatividade [2] e pelos arsenais multifariamente a ela ligados – centrados no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”. Não por acaso, conforme aquilata Guacira Lopes Louro, no espaço da educação escolar,

[...] os sujeitos que, por alguma razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na seqüência sexo/ gênero/sexualidade serão tomados como minoria e serão colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos marginalizados continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam (LOURO, 2004b: 27, grifos nossos).

 A escola configura-se um lugar de opressão, discriminação e preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT [3]  – muitos/as dos/as quais vivem, de maneiras distintas [4], situações delicadas e vulneradoras de internalização da homofobia, negação, autoculpabilização, auto-aversão. E isso se faz com a participação ou a omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado.

 Diante disso, em 1998, as autoridades britânicas instituíram o School Standards and Framework Act, que obriga os dirigentes escolares a adotarem medidas para evitar toda forma de intimidação entre estudantes. Em 2007, foi aprovada a regulamentação do Equality Act voltada a eliminar discriminações por orientação sexual no acesso, no fornecimento e na utilização de bens e serviços públicos e privados, e o governo determinou que até mesmo as escolas religiosas deverão ensinar o respeito à livre expressão sexual [5]. Nos Estados Unidos, onde três em cada quatro estudantes LGBT da high school declaram viver rotinas de assédio e violência verbal, física ou sexual, há uma crescente mobilização para fazer das escolas ambientes seguros, livres e educativos para estudantes, profissionais e familiares, independentemente de suas identidades sexuais e de gênero (JENNINGS, 2005: xiv; PERROTTI e WESTHEIMER, 2001) [6].

 No Brasil, em 2004, o governo federal lançou, em conjunto com a sociedade civil, o “Programa Brasil sem Homofobia”, voltado a formular e a implementar políticas integradas e de caráter nacional de enfrentamento ao fenômeno [7]. O programa traz, no seu cerne, a compreensão de que a democracia não pode prescindir do pluralismo e de políticas de equidade e que, para isso, é indispensável interromper a longa sequência de cumplicidade e indiferença em relação à homofobia e promover o reconhecimento da diversidade sexual e da pluralidade de identidade de gênero, garantindo e promovendo a cidadania de todos/as [8]. Ao envolver autoridades, profissionais da educação, membros da comunidade escolar e da sociedade em geral em esforços de desestabilização da homofobia, também será necessário não esquecer que o poder e as instituições (entre elas, a escola) funcionam produtivamente em termos de interdições e de estímulos [9]. A repressão sexual (enquanto prática institucional, da qual a homofobia é uma de suas expressões, embora a transcenda) opera não só pelo conjunto explícito de interdições, censuras ou por um código negativo e excludente, mas se efetiva, sobretudo, por meio de discursos, ideias, representações, práticas e instituições que definem e regulam o permitido, distinguindo o legítimo do ilegítimo, o dizível do indizível, delimitando, construindo e hierarquizando seus campos [10].

  Guacira Lopes Louro observa que, embora não se possa atribuir à escola o poder e a responsabilidade de explicar identidades sociais ou de determiná-las de forma definitiva, é necessário reconhecer que “suas proposições, suas imposições e proibições fazem sentido, têm ‘efeitos de verdade’, constituem parte significativa das histórias pessoais” (LOURO, 1999: 21). Sobre a homofobia, acrescenta: “Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo” (ibid.: 29).

 Ao ser não apenas consentida, mas também ensinada, a homofobia adquire nítidos contornos institucionais, tornando indispensáveis pesquisas que nos permitam conhecer a fundo as dinâmicas de sua produção e reprodução nas escolas, bem como os seus efeitos nas trajetórias escolares e nas vidas de todas as pessoas. Somos também desafiados a construir indicadores sociais de homofobia nos sistemas escolares para, entre outras coisas, formularmos, implementarmos e executarmos políticas educacionais inclusivas [11].

 Homofobia nas escolas: dados preliminares

Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais têm sido uma constante na vida escolar e profissional de jovens e adultos LGBT. Essas pessoas veem-se desde cedo às voltas com uma “pedagogia do insulto”, constituída de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes – poderosos mecanismos de silenciamento e de dominação simbólica. Por meio dessa pedagogia, estudantes aprendem a “mover as alavancas sociais da hostilidade contra [a homossexualidade] antes mesmo de terem a mais vaga noção quanto ao que elas se referem” (SULLIVAN, 1996: 15).

 A esse respeito, Denilson Lopes (2003) observa que um garoto pode ser objeto de escárnio por parte de colegas e professores (“o veadinho da escola”) antes mesmo de identificar-se como gay. Em tal caso, tenderá a ter seu nome escrito em banheiros, carteiras e paredes da escola (CAETANO e RANGEL, 2003), permanecendo alvo de zombaria, comentários e outras variadas formas de assédio e violência ao longo de sua vida escolar. 

 A pesquisa “Perfil dos Professores Brasileiros”, realizada pela Unesco, entre abril e maio de 2002, em todas as unidades da federação brasileira, na qual foram entrevistados 5 mil professores da rede pública e privada, revelou, entre outras coisas, que para 59,7% deles é inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que 21,2% deles tampouco gostariam de ter vizinhos homossexuais (UNESCO, 2004: 144, 146).

 Outra pesquisa, realizada pelo mesmo organismo em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal, forneceu certa compreensão do alcance da homofobia no espaço escolar (nos níveis fundamental e médio). Constatou-se, por exemplo, que:

 - o percentual de professores/as que declaram não saber como abordar os temas relativos à homossexualidade em sala de aula vai de 30,5% em Belém a 47,9% em Vitória;
 - acreditam ser a homossexualidade uma doença cerca de 12% de professores/ as em Belém, Recife e Salvador, entre 14 e 17% em Brasília, Maceió, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Goiânia e mais de 20% em Manaus e Fortaleza;
 - não gostariam de ter colegas de classe homossexuais 33,5% dos estudantes de sexo masculino de Belém, entre 40 e pouco mais de 42% no Rio de Janeiro, em Recife, São Paulo, Goiânia, Porto Alegre e Fortaleza e mais de 44% em Maceió e Vitória; 
- pais de estudantes de sexo masculino que não gostariam que homossexuais fossem colegas de seus filhos: 17,4% no Distrito Federal, entre 35% e 39% em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, 47,9% em Belém, e entre 59 a 60% em Fortaleza e Recife; 
- estudantes masculinos apontaram “bater em homossexuais” como o menos grave dos seis exemplos de uma lista de ações violentas (ABRAMOVAY et al., 2004: 277-304).

 Uma pesquisa sobre o perfil sociopolítico dos/as participantes da Parada do Orgulho GLTB na cidade do Rio de Janeiro, em 2004, revelou, entre outras coisas, que a discriminação de caráter homofóbico nas escolas “assume dimensões de uma epidemia grave quando as vítimas são muito jovens”: “Nada menos do que 40,4% dos adolescentes entre 15 e 18 anos foram vítimas dessa experiência. Entre jovens de 19 e 21 anos, 31,3% referiram-se a discriminações na escola ou na faculdade” (CARRARA e RAMOS, 2005: 80) [12].

  É inegável a importância de novas sondagens para verificar, por exemplo, se tais cifras não poderiam apontar para cenários ainda mais dramáticos se os universos considerados fossem paisagens interioranas, cidades situadas em regiões economicamente deprimidas, centros educacionais de formação tecnológica e agrícola, entre outros. Seria necessário poder comparar as possíveis diferenças nas manifestações e nos efeitos da homofobia em escolas de periferia e de elite, em escolas públicas, confessionais e militares, no sistema formal e informal de educação de adultos etc.

 Um meticuloso confronto com o panorama internacional também seria altamente recomendado. O crescente número de pesquisas realizadas em larga escala sobre juventudes LGBT em diversos países oferece não apenas informações, mas metodologias de investigação e de atuação. Em muitos deles, organizam-se redes de ativistas e educadores [13] e implementam-se políticas públicas antidiscriminatórias [14], na esteira de uma agenda dos direitos humanos promovida cada vez mais em níveis extranacionais [15].

 Gênero e homofobia: o caso da masculinidade hegemônica

 
 Orquestrados pela heteronormatividade, os processos de construção de sujeitos compulsoriamente heterossexuais [16] se fazem acompanhar pela rejeição da homossexualidade (LOURO, 1999: 27), expressa por meio de atitudes, enunciações e comportamentos, não raro, abertamente homofóbicos. Disto resulta que “homem que é homem bate em veado”. E embora para a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade concorram diversos espaços sociais e institucionais, parece ser na escola e na família onde se verificam seus momentos cruciais. Assim, é razoável supor que, na escola, a homofobia produza efeitos sobre todo o alunado. 

 Neste ambiente (e não só aqui), os processos de constituição de sujeitos e de produção de identidades heterossexuais produzem e alimentam a homofobia e a misoginia, especialmente entre os meninos e os rapazes. Para eles, o “outro” passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade (LOURO, 2004a: 82; DIAS e GAMBINI, 1999: 176-179). À disposição deles estará um inesgotável arsenal “inofensivo” de piadas e brincadeiras (racistas, misóginas e homofóbicas) [17]. E eles deverão, entre outras coisas, ser cautelosos na expressão de intimidade com outros homens, conter a camaradagem e as manifestações de apreço ou afeto, e somente se valer de gestos, comportamentos e ideias autorizados para o “macho” (LOURO, 1999: 28).

 À revelia, portanto, de toda a problematização das noções correntes de masculino e feminino e das transformações no plano das subjetividades (GIDDENS, 1993; HEILBORN, 2004), ainda prevalece, na cotidianidade escolar da maioria desses rapazes, um arsenal heteronomativo (composto de enunciações, discursos, representações, significados e adoções práticas) que, ao ensejar a construção e o exercício da masculinidade, os vincula a um conjunto de representações e práticas ligadas a um modelo de “homem de verdade” (NOLASCO, 1995, 1997; WELZER-LANG, 2001: 468). Nesse universo, um modelo específico de masculinidade é considerado como algo a ser duramente conquistado pelos indivíduos do sexo masculino, ao passo que a feminilidade, com certa frequência, é percebida como um “componente natural [e exclusivo] da mulher”, reafirmada nas gravidezes e nos partos (BADINTER, 1995; ALMEIDA, 1995).

 Ao longo desse processo, ocorre a internalização de um conjunto de disposições sociais que se naturalizam nas dinâmicas das relações cotidianas e tomam formas visíveis nas maneiras de ser, portar-se, andar, falar, gesticular, manter o corpo, pensar, sentir e agir das pessoas (BOURDIEU, 1983, 1999). Os rapazes são, assim, contínua e insistentemente submetidos a vigilantes avaliações e negociações com vistas a reafirmarem de maneira performática suas masculinidades heterossexuais e obterem a aprovação e a validação por parte de outros homens, já que “nada garante sua confirmação para todo o sempre” (NASCIMENTO, 2004: 107).

 Miguel Vale de Almeida (1995) mostra que a masculinidade hegemônica se constitui, então, como um modelo ideal, praticamente irrealizável, que subordina outras possíveis variedades de masculinidades e exerce um efeito controlador no processo de constituição de identidades masculinas. Realizadas em Pardais (vilarejo alentejano), suas pesquisas encontram eco em outras produzidas no interior brasileiro [18], que mostram rapazes permanentemente submetidos a “processos de provação” que, em geral, se constituem de
[...] demonstrações de força, destemor e virilidade que constroem a honra de um homem perante a sociedade ou o grupo em que vive. A falta de um desses itens obviamente coloca em risco a honra masculina, construída em contraposição a determinadas características femininas que um “homem de verdade” jamais deve dar indícios de ter (SABINO, 2000: 92).

  Com efeito, como nota Roberto Da Matta (1997) em um estudo sobre a construção e o exercício da masculinidade em uma pequena cidade brasileira, os rapazes, ao serem submetidos a rituais inerentes ao “ser homem”, ficam expostos a dúvidas, incertezas e angústias relativas à confirmação de “não ser mulher” e “nem ser veado”. Assim, ao longo da construção de repertórios de masculinidades adolescentes, “o silêncio masculino acerca dos afetos e das emoções, como um território não explorado, muitas vezes é causador de atitudes e de comportamentos ligados à violência, à cultura do risco e da coerção” (NASCIMENTO, 2004: 109). Qualquer enternecimento ou preocupação com a segurança podem ser vistos como atributos desvirilizantes.

 A construção da mascunilidade dentro do quadro das normas de gênero e da heteronormatividade (e outros arsenais) configura-se, portanto, em um processo dotado de altas doses de cerceamento, fazendo com que a parte dominante (o elemento “masculino”) seja ironicamente “dominada por sua própria dominação”.



O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contraposição na tensão e na contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade. [...] A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo, uma carga (BOURDIEU, 1999: 64) [19].

 Por isso, dentro e fora do espaço escolar, a construção do modelo hegemônico de mascunilidade costuma obrigar os que estão sendo provados a afirmarem diante dos demais suas virilidades por meio da violência física (SCHPUN, 2004), de demonstrações de intrepidez e de atos voltados a degradar e depreciar o “outro” por meio de insultos e humilhações de cunho sexista, homofóbico ou racista, que agem como mecanismos psicológicos ou ritualísticos voltados a instituir ou a reforçar suas auto-imagens e identidades sociais masculinas e viris (LEAL e BOFF, 1996). A masculinidade é disputada, construída como uma forma de ascendência social de uns e de degradação de outros.

 Tenta-se, na competição, feminilizar os outros: pelos gestos de convite sexual que transformam a vítima em “mulher simbólica”, pelas brincadeiras [...] pela competição monetária [...]. Em todo caso, o recurso ao tropo da homossexualidade é recorrente. Esta é entendida como desempenho de um papel passivo, penetrado, numa relação fantasiosa, em que o “ativo” e penetrador não perde, pelo fato, masculinidade (ALMEIDA, 1995: 189).

  Assim sendo, não deveria surpreender que as ansiedades, as angústias e os medos de se perder o reconhecimento da virilidade sejam fontes inesgotáveis de sofrimento. Como, de resto, já observava Bourdieu:

Certas formas de “coragem” [...] – como as que, nos ofícios de construção, em particular, encorajam e pressionam a recusar as medidas de prudência e a negar ou a desafiar o perigo com condutas de exibição de bravura, responsáveis por numerosos acidentes – encontram seu princípio, paradoxalmente, no medo de perder a estima ou a consideração do grupo, de “quebrar a cara” diante dos “companheiros” e de se ver remetido à categoria, tipicamente feminina, dos “fracos”, dos “delicados”, das “mulherzinhas”, dos “veados”. Por conseguinte, o que chamamos de “coragem” muitas vezes tem suas raízes em uma forma de covardia: [...] basta lembrar todas as situações em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de dominação, de exploração ou de opressão baseou-se no medo “viril” de ser excluído do mundo dos “homens” sem fraquezas, dos que são por vezes chamados de “duros” porque são duros para com o próprio sofrimento e sobretudo para com o sofrimento dos outros [...] (BOURDIEU, 1999: 66).

   Os efeitos disso se fazem sentir de modo transversal e exponencial. O prejuízo é geral; o desconforto, permanente; e o risco de violência paira constantemente no ar. É preciso, assim, atentar para o fato de que a lógica de “homossociabilidade homofóbica” própria de determinados espaços sociais (como bares, times e torcidas organizadas de futebol, forças armadas, internatos, conventos, seminários etc.) pode encontrar, no interior das escolas, novos meios e oportunidades para produzir, reproduzir ou alimentar mecanismos de discriminação e violência contra estudantes mulheres, LGBT, bem como todo indivíduo cuja expressão de gênero parecer destoar da tida como convencional.

 Vale lembrar ainda que, também em virtude desse processo de construção de mentes e corpos afinados com tal modelo heteronormativo, se verificam a produção e a distribuição desigual social do “fracasso escolar” entre meninos e meninas. Tais produção e distribuição apresentam nexos com as diferenças inerentes aos processos de socialização de meninos e meninas (e, por conseguinte, de construção e hierarquização de identidades de gênero), alimentadas por estruturas curriculares e cotidianidades escolares que, por sua vez, reforçam ulteriormente ou são continuamente reforçadas por concepções heteronormativas. Assim, não por acaso, meninos e rapazes têm apresentado maiores problemas em suas situações e trajetórias educacionais [20]. Ou seja, a escola, ao discriminar formas não hegemônicas de masculinidades, paradoxalmente, produz maiores dificuldades no desenvolvimento de capacidades comumente entendidas como atributos femininos, tais como ler e narrar histórias (WILSON, 2004) [21]. As meninas, por sua vez, são geralmente levadas a adotar certos tipos de condutas mais valorizadas naquela ambiência: passividade, obediência, calma, silêncio, ordem, capricho e minúcia (SILVA et al., 1999) [22].

 É importante observar, no entanto, que pesquisas têm apontado que, aliada a outros fatores, a formação escolar pode contribuir para promover movimentações neste cenário. Mesmo no universo rural e em pequenos centros, verifica-se entre os rapazes que apresentam maior interesse e logram prosseguir os estudos uma tendência à incorporação de modos de agir que os afastam do centro gravitacional que o modelo masculino hegemônico representaria (ALMEIDA, 1995). Isto também vale para as mulheres em ainda maior proporção. Afinal, nota Bourdieu (2000: 105), por se encontrarem “menos apegadas do que os homens [...] à condição camponesa e menos empenhadas [...] nas responsabilidades de poder”, não só se acham “menos presas pela preocupação com o patrimônio a ‘manter’”, como também acabam por se mostrar “mais dispostas em relação à educação e às promessas de mobilidade que ela contém” e – o que é crucial – mais motivadas ao trabalho de reestruturação de suas percepções do mundo social e, com isso, de relativização das referências rígidas e absolutas que o povoam [23].

Homofobia e estudantes LGBT 

 Embora produza efeitos sobre todo o alunado, é mais plausível supor que a homofobia incida mais fortemente nas trajetórias educacionais e formativas e nas possibilidades de inserção social de jovens que estejam vivenciando processos de construção identitária sexual e de gênero que os situam à margem da “normalidade”. É difícil negar que a homofobia na escola exerce um efeito de privação de direitos sobre cada um desses jovens. Por exemplo: afeta-lhes o bem-estar subjetivo [25]; incide no padrão das relações sociais entre estudantes e destes com profissionais da educação (HUMAN WATCH, 2001); interfere nas expectativas quanto ao sucesso e ao rendimento escolar; produz intimidação, insegurança, estigmatização, segregação e isolamento; estimula a simulação para ocultar a diferença (MARTIN, 1982; CAETANO, 2005); gera desinteresse pela escola; produz distorção idade-série, abandono e evasão; prejudica a inserção no mercado de trabalho; enseja uma visibilidade distorcida; vulnerabiliza física e psicologicamente [26]; tumultua o processo de configuração e expressão identitária; afeta a construção da auto-estima; influencia a vida socioafetiva; dificulta a integração das famílias homoparentais e de pais e mães transgêneros na comunidade escolar e estigmatiza seus filhos/as [27].

 Inegavelmente, os casos mais evidentes têm sido os vividos por travestis e transexuais, que têm, na maioria dos casos, suas possibilidades de inserção social seriamente comprometidas por verem-se privadas do acolhimento afetivo em face às suas experiências de expulsões e abandonos por parte de seus familiares e amigos (DENIZART, 1997; PERES, 2004; STECZ, 2003). A essas experiências costumam se somar outras formas de violência por parte de vizinhos, conhecidos, desconhecidos e instituições. Com suas bases emocionais fragilizadas, elas e eles, na escola, têm que encontrar forças para lidar com o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas, professores/as, dirigentes e servidores/as escolares. As experiências de chacota e humilhação, as diversas formas de opressão e os processos de exclusão, segregação e guetização a que estão expostas travestis e transexuais constituem um quadro de “sinergia de vulnerabilidades” (PARKER, 2000) que as arrasta como uma “rede de exclusão” que “vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, assim como de políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas, como o direito de acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança” (PERES, 2004: 121; BÖER, 2003). Nas escolas, não raro, enfrentam obstáculos para se matricularem, participarem das atividades pedagógicas, terem suas identidades minimamente respeitadas, fazerem uso das estruturas das escolas (os banheiros, por exemplo) [28] e conseguirem preservar sua integridade física [29].

 É acaciano dizer que tais dificuldades tendem a ser ainda maiores se pessoas homoeróticas e/ou com identidade ou expressão de gênero fora do padrão convencional pertencerem ainda a outros setores também discriminados e vulneráveis (mais pobres, menos letrados, identificarem-se como mulheres, negros, indígenas, soropositivos, possuidores de uma assim dita deficiência física [30] ou mental etc.) e não puderem (ou não quiserem) manter um estilo de vida sintonizado com a celebração hedonista do “ser jovem” e ter um corpo “sarado” [31].

 Ademais, é preciso não descurar que a homofobia, em qualquer circunstância, é fator de sofrimento [32] e injustiça. Também por isso, o astucioso argumento de que ela seria “menos grave quando não produz baixo rendimento, evasão ou abandono escolar” deve ser enfaticamente repelido. Afinal, inseridos/as em um cenário de stress, intimidação, assédio, não acolhimento e desqualificação permanentes, adolescentes e jovens estudantes homossexuais, bissexuais ou transgêneros são freqüentemente levados/as a incorporar a necessidade de apresentarem um desempenho escolar irrepreensível, acima da média.

 Tal como ocorre com outras “minorias”, esse/a estudante tende a ser constantemente impelido/a a apresentar “algo a mais” para, quem sabe, “ser tratado/a como igual” [33]. Sem obrigatoriamente perceber a internalização dessas exigências, é instado/a a assumir posturas voltadas a fazer dele/a: “o melhor amigo das meninas”, “a que dá cola para todo mundo”, “um exímio contador de piadas”, “a mais veloz nadadora”, “o goleiro mais ágil” etc. Outros/as podem dedicar-se a satisfazer e a estar sempre à altura das expectativas dos demais, chegando até mesmo a se mostrarem dispostos/as a imitar condutas ou atitudes convencionalmente atribuídas a heterossexuais.

 Trata-se, em suma, de esforços para angariar um salvo-conduto que possibilite uma inclusão (consentida) em um ambiente hostil. Uma frágil acolhida, geralmente traduzida em algo como: “É gay, mas é gente fina”, que pode, sem dificuldade e a qualquer momento, se reverter em “É gente fina, mas é gay” [34]. E aí, o intruso é arremetido de volta ao limbo. Como nota Marina Castañeda (2007: 152-153), essa frenética busca de “supercompensação” – fonte de ansiedade, autocobrança e perfeccionismo exagerados – não impede que qualquer insucesso do candidato seja logo traduzido como sinal inequívoco de seu “defeito homossexual” [35]. “Só podia ser gay mesmo!”; “É assim que eles são!” [36]

 Alheamento e intolerância selvagem

 
 Outro nítido traço de homofobia se expressa na indiferença cultivada em relação ao sofrimento e aos demais efeitos da homofobia na vida de nossos/as estudantes (homo, hetero ou bissexuais) [37]. Na escola, mas não apenas ali,

[c]omo se a homossexualidade fosse “contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade (LOURO, 1999: 29).

  Mais do que uma mera indiferença, produto de uma difusa negligência, o que se vê aqui assume mais os contornos de uma vedação à manifestação de simpatia ou solidariedade. Uma proibição socialmente sancionada que, entre outras coisas, contribui para fortalecer os processos de internalização da homofobia. Uma vez introjetada, ela pode conduzir a pessoa a se sentir envergonhada, culpada e até merecedora da agressão sofrida, mantendo-a imobilizada, em silêncio, entregue a seu destino de pária social. À violência propriamente dita soma-se a “violência simbólica” [38], fazendo com que a própria vítima contribua para a legitimação da agressão e favoreça o agressor e os seus difusos cúmplices.

  A falta de solidariedade por parte de profissionais, da instituição e da comunidade escolar diante das mais corriqueiras cenas de assédio moral contra estudantes LGBT pode produzir ulteriores efeitos nos agressores e nos seus cúmplices. Além de encorajados a continuarem agindo, aquiescendo ou omitindo-se, são aprofundados em um processo de “alheamento” que, segundo Jurandir Freire Costa:

 [...] consiste numa atitude de distanciamento, na qual a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito como ser moral. [...] significa não vê-lo como um agente autônomo [...] um parceiro [...] ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua integridade física e moral. [...] No estado de alheamento, o agente da violência não tem consciência da qualidade violenta de seus atos (COSTA, 1997: 70).

 Este alheamento esvazia o sentido da vida, alimenta o cinismo, anestesia as sensibilidades em relação às injustiças, conduz à naturalização do inaceitável, produz uma resignação ao intolerável e mina os parâmetros éticos ainda subsistentes.

 Importante observar que a “indignação narcísica” [39] não exclui o estado de “alheamento”, mas costuma, ao contrário, acompanhá-lo, realimentá-lo e ser um forte índice da sua existência, pois é uma forma de indiferença e de negação em relação ao sofrimento de toda pessoa que não é identificada como um dos seus “iguais”.

 Na França, pesquisas com jovens vítimas de injúria de natureza abertamente homofóbica revelaram que, em todos os casos, foi uma constante a indiferença ou a passividade dos adultos circunvizinhos. Isso foi, com certa freqüência, experimentado pelas vítimas como mais traumatizante do que o próprio traumatismo em si (VERDIER e FIRDION, 2003). Nunca é demais sublinhar que este estado de negação constitui, pelo menos, uma forma passiva de homofobia.

 Ao lado disso, é preciso lembrar da “violência selvagem”, que Umberto Eco (2000: 18) avalia como a mais perigosa. Trata-se daquele tipo de intolerância que, “na ausência de qualquer doutrina, nasce dos impulsos mais elementares” e, por isso, é difícil de ser combatida, uma vez que apresenta alta capacidade de sobreviver a qualquer objeção crítica e, assim, de resistir aos fatos que a desmintam. Parafraseando Tzvetan Todorov (1999: 37) quando este aborda o anti-semitismo, podemos afirmar que, especialmente em situações como essas, sujeitos homossexuais são perseguidos não pelo que fazem, mas simplesmente pelo que são: pessoas homossexuais. Não por acaso, parte importante das expressões de ódio homofóbico encontra-se precisamente no terreno dessa forma de intolerância.

  Uma pessoa que carrega um cartaz dizendo “Deus odeia as bichas”; que acha repugnante qualquer associação com homossexuais simplesmente porque eles são atraídos por pessoas do mesmo sexo; que maltrata, despreza ou procura prejudicar os homossexuais porque acredita que eles não são completamente humanos; que persegue, assalta ou assassina homossexuais por paixão, por medo ou por um ódio inexplicável, não é uma pessoa com um argumento. É uma pessoa com um sentimento. Não há nenhum argumento possível contra tal pessoa, pois um argumento não seria uma resposta apropriada (SULLIVAN, 1996: 28).

  Mesmo diante da dificuldade de dissuadir racionalmente alguém embebido de ódio homofóbico, uma sociedade democrática e suas instituições (inclusive a escola) devem envidar esforços para coibir e impedir que a selvageria intolerante cause ulteriores sofrimentos e para diminuir os efeitos que ela possa ter (até mesmo na alimentação do desprezo e do ódio em relação a outros grupos).

 Como casos extremos como esses não costumam ser a regra, é importante criar, nos espaços de formação, oportunidades de fala e de reflexão com vistas a fornecer recursos simbólicos às pessoas envolvidas nos encontros e nos desencontros com a diferença. Sistematicamente se negligencia, porém, que isso deve valer especialmente para aquelas com enormes dificuldades para lidar com o sentimento de insuportabilidade que o contato com a diferença lhes provoca – sobretudo em função do “retorno do recalcado”. Por mais difícil que seja (e para algumas pessoas isso é ultrajante), é preciso reconhecer que, muitas vezes, a pessoa preconceituosa apega-se às suas crenças, aos sistemas de disposições socioculturais, para procurar responder à “ameaça” que a diferença lhe parece representar. Tais sentimentos de insuportabilidade e insegurança também constituem uma forma de sofrimento, e recusar-se a percebê-lo equivale a desconsiderar o papel da educação e a continuar pensando e agindo segundo a lógica do “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 1930 [1976: 81-171]), moralista, simplista e autorreferente. Esforços pela promoção de uma cultura do reconhecimento que não envolvam ou cativem atores situados em diferentes condições e posições nesse cenário tenderão certamente ao fracasso [40].

 Regimes de invisibilidade

 
Todo esse quadro concorre para fazer da escola, como observa Guacira Louro,

 [...] sem dúvida, um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo e que esse tipo – inato a todos – deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O lugar do conhecimento mantém-se, com relação à sexualidade, como lugar do desconhecimento e da ignorância (LOURO, 1999: 30).

   O processo de invisibilização de homossexuais, bissexuais e transgêneros no espaço escolar precisa ser desestabilizado. Uma invisibilidade que é tanto maior se se fala de uma economia de visibilidade que extrapole os balizamentos das disposições estereotipadas e estereotipantes. Além disso, as temáticas relativas às homossexualidades, bissexualidades e transgeneridades são invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo nas discussões sobre direitos humanos na escola.


 Essa invisibilidade a que estão submetidas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais comporta a sua exclusão enquanto tais do espaço público e, por isso, configura-se como uma das mais esmagadoras formas de opressão. É inquietante notar que alguém que não pode existir, ser visto, ouvido, conhecido, reconhecido, considerado, respeitado e tampouco amado pode ser odiado [41].

 A tendência já detectada em pesquisas consagradas segundo as quais a escola se nega a perceber e a reconhecer as diferenças de públicos, mostrando-se “indiferente ao diferente” [42], encontra, no caso de estudantes homossexuais, bissexuais ou transgêneros, sua expressão mais incontestável. Professores/as costumam dirigir-se a seus grupos de estudantes como se jamais houvesse ali um gay, uma lésbica, um/a bissexual ou alguém que esteja se interrogando acerca de sua identidade sexual ou de gênero. Impera, nesse caso, o princípio da heterossexualidade presumida, que faz crer que não haja homossexuais em um determinado ambiente (ou, se houver, deverá ser “coisa passageira”, que “se resolverá quando ele/ela encontrar a pessoa certa”). A presunção de heterossexualidade enseja o silenciamento e a invisibilidade das pessoas homossexuais e, ao mesmo tempo, dificulta enormemente a expressão e o reconhecimento das homossexualidades [43] como maneiras legítimas de se viver e se expressar afetiva e sexualmente (BECKER, 2005).

 A promoção da exclusão das pessoas homossexuais, bissexuais e transgêneros do campo de reivindicações de direitos é sistematicamente acompanhada pela construção de um conjunto de representações simplificadoras e desumanizantes sobre elas, suas práticas sociais e seus estilos de vida. A invisibilidade aliada a uma visibilidade distorcida pode tornar-lhes ainda mais titubeante e doloroso o processo de construção identitária. Não por acaso, entre muitos jovens e adolescentes verifica-se certa resistência ao emprego dos termos gay e lésbica como forma de autodesignação identitária (RYAN e FRAPPIER, 1994).

 As descobertas e as experimentações sexuais vividas na adolescência, por menos repressivo que seja o contexto em que se dão, não costumam ser encaradas com muita tranquilidade. Evidentemente, as dificuldades de se viverem as homossexualidades nesse período podem ser ainda maiores. Poucos/as jovens se sentirão à vontade para se exporem e, não raro, muitas dessas pessoas enfrentarão processos de profunda negação de sua orientação sexual. Com isso, alimentarão as lógicas de invisibilização e, involuntariamente, reforçarão as crenças alimentadas pelo “princípio da presunção da heterossexualidade”.

 Essa presunção pode ser ainda mais forte em relação às jovens e faz com que as estudantes lésbicas (e não apenas elas) se tornem ainda mais invisíveis. O fato de a sociedade aceitar certas manifestações de afeto entre as mulheres contribui para o reforço de tal presunção. No entanto, tal aceitação não pode ser confundida com uma maior tolerância em relação à lesbianidade. Pelo contrário, basta notar que o fato de as mulheres serem sujeitos historicamente relegados a um plano secundário em praticamente todos os campos sociais agrava-se ulteriormente no caso das mulheres homossexuais. A invisibilidade lésbica (mais do que a feminina em geral) foi construída ao longo da História (e na historiografia), nos discursos sobre a sexualidade, a homossexualidade, a militância [44] e a diversidade em geral. Vetores discriminatórios que operam no mundo social contra as mulheres em geral acirram-se no caso das mulheres lésbicas (e ainda mais se forem lésbicas pertencentes a outras “minorias”, produzindo em turbilhão de vulnerabilidades) [45].

 É preciso perceber que, em relação à lesbianidade, está se tornando mais aceito socialmente o tipo de par que reúne mulheres brancas, “casadas” (em relação estável), “femininas” e sem disparidade de classe ou geração, ou seja, mais próximas aos tipos socialmente valorados (BORGES, 2005: 23) [46]. 

 O cerceamento do campo das possibilidades legítimas de expressão de uma identidade sexual não inteiramente sintonizada com a heteronormatividade também implica a invisibilidade e a difícil inclusão das pessoas bissexuais no campo das reivindicações de direitos civis.


 Nesse caso, as tensões oriundas da construção de uma identidade fronteiriça (comumente estigmatizada entre as figuras do “libertino”, do “indeciso” ou do “enrustido”), conduzem muitas pessoas bissexuais a operações em que alternam constantemente o que tornar visível ou invisível (SEFFNER, 2004: 97). Isso, porém, não significa que apenas bissexuais adotem (conscientemente ou não) práticas de visibilização ou de invisibilização estratégica. Afinal, é acaciano lembrar que todas as pessoas vivem processos ao longo dos quais se tensionam o público e o privado.

 É preciso notar que o binarismo e o essencialismo produzem, em relação às pessoas bissexuais, dois fenômenos contraditórios e complementares. De um lado, há pessoas que, ao dividirem os contingentes humanos em “gays ou héteros”, de monstram dificuldades em aceitar a bissexualidade e vêem-na como estratégia de ocultação de uma “real homossexualidade”. De outro, uma vez que, segundo a doxa prevalecente, “todo gay é afeminado” (ou que “toda lésbica é masculina”), não é incomum que entre homens bissexuais costume ser rechaçada qualquer proximidade com as identidades homossexuais. Assim, não raro, a construção da masculinidade bissexual passa pela negação de uma semelhança percebida como ameaça. Com efeito, entre os bissexuais, Seffner nota:

A aproximação com a homossexualidade, especialmente na sua face de homem efeminado, com trejeitos, é recusada de forma peremptória, e isto se expressa de forma muito clara nos anúncios, nos quais são frequentes referências como “descartam-se bichas efeminadas, pré-travequinhas, entendidos afetados ou outros metidos a mulher” (ibid.: 99) [47].

Como podemos observar, aqui também as questões referentes ao gênero emergem com grande força, intrinsecamente vinculadas a outras relativas à orientação sexual, em um campo minado por preceitos, preconceitos e tensões, fontes de ulterior sofrimento. Não por acaso, dependendo, por exemplo, de como se delineiam as possibilidades de reconhecimento (entendido como aceitação e auto aceitação) das diversas orientações sexuais e identidades de gênero, jovens e adolescentes poderão preferir atribuir-se ora uma ora outra identidade, inventar outras, recusar todas, ou aprofundar-se em um angustioso silêncio. Não surpreende que muitos poderão autodesignarem-se “heterossexuais” mesmo quando mantiverem quase somente relações homoeróticas. 

 O preconceito, a discriminação e a violência que, na escola, atingem gays, lésbicas e bissexuais e lhes restringem direitos básicos de cidadania, se agravam em relação a travestis e a transexuais. Essas pessoas, ao construírem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, não podem passar incógnitas. Por isso, não raro, ficam sujeitas às piores formas de desprezo, abuso e violência. Não por acaso, diversas pesquisas têm revelado que as travestis constituem a parcela com maiores dificuldades de permanência na escola de inserção no mercado de trabalho em função do preconceito e da discriminação sistemática a que estão submetidas (PARKER, 2000; PERES, 2004). Tais preconceitos e discriminações incidem diretamente na constituição de seus perfis sociais, educacionais e econômicos, os quais, por sua vez, serão usados como elementos legitimadores de ulteriores discriminações e violências contra elas. A sua exclusão da escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.

Escola e desestabilização da homofobia

 
Sem prejuízo do que foi considerado acerca do papel da escola na reprodução dos mecanismos relativos à dominação masculina e heteronormativa, é preciso não esquecer que ela é, ao mesmo tempo, elemento fundamental para contribuir para desmantelá-los.

 Profissionais da educação, no entanto, ainda não contam com suficientes diretrizes e instrumentos adequados para enfrentar os desafios relacionados aos direitos sexuais e à diversidade sexual. É comum que tais profissionais declarem não saber como agir quando um estudante é agredido por parecer ou afirmar ser homossexual, bissexual ou transgênero. O que dizer a ele ou a uma turma geralmente hostil? O assunto deve ser levado a pais e mães? [48] E, quando sim, de que modo? Como se comportar quando uma criança declara, em sua redação, seu afeto por um/ a colega do mesmo sexo? A troca de gestos de carinho entre estudantes de mesmo sexo ou alterações no modo de se vestir, falar, gesticular devem receber algum tipo de atenção particular? É legítimo o pedido de uma pessoa para não ser chamada pelo seu nome do registro civil, mas por um nome social de outro gênero? Como lhe garantir acesso a cada espaço da escola e tratamento adequado por parte da comunidade escolar? É possível abordar temáticas relativas aos direitos das pessoas LGBT nas reuniões entre docentes? Como introduzir tais questões no currículo escolar de uma maneira não heteronormativa? Que medidas podem ou devem ser adotadas em defesa das prerrogativas constitucionais do profissional homossexual, travesti ou transexual? Que fazer quando em uma daquelas reuniões de “pais e mestres” comparecerem duas mães ou dois pais para discutir a situação de um mesmo aluno ou aluna? [49] E se um deles é travesti ou transexual? Por isso, é inquestionável a importância de medidas voltadas a oferecer, sobretudo a profissionais da educação, diretrizes consistentes; a incluir de modo coerente tais temas na sua formação inicial e continuada; bem como a estimular a pesquisa e a divulgação de conhecimento acerca da homofobia, da sua extensão e dos modos de desestabilizá-la. 

 Agora, esforços voltados à problematização e à desestabilização da homofobia nas escolas tenderão ao fracasso se não observarem o caráter estruturante e não residual do preconceito e da violência homofóbica e seus vínculos com outros fenômenos sociais. O insucesso poderá ser o mesmo se tais iniciativas apenas visarem a instilar nos profissionais da educação certo “senso de culpa” (ou fornecer-lhes um meio para aliviarem-se dele). Tais enfoques tenderiam a desorientar e a imobilizar, pois ensejam a confusão do individual com o social, do episódico com o histórico, do pessoal com o político, da suposta generosidade com o reconhecimento de direitos. 

 Será preciso também reconhecer a multiplicidade e a dinâmica das construções identitárias e, ao mesmo tempo, ir além das medidas assentadas em premissas bem-intencionadas e comumente limitadas a economias lineares, binárias e moralistas do “politicamente correto” e da “guerra dos gêneros”. Suely Rolnik adverte:

[...] Figuras se desmancham, outras se esboçam; gêneros e identidades se embaralham, outros se delineiam – e a paisagem vai mudando de relevo. Uma lógica das multiplicidades e dos devires rege a simultaneidade dos movimentos que compõem esse plano. Estamos longe dos binarismos (ROLNIK, 1998: 64). [...] se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e pelos gêneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, será preciso travar simultaneamente uma guerra contra a redução das subjetividades a gêneros, a favor da vida e das suas misturas (ibid.: 67).

 Na escola, o trabalho voltado a problematizar e a subverter a homofobia (e outras concepções preconceituosas e práticas discriminatórias) requer, entre outras coisas, pedagogias, posturas e arranjos institucionais eficazes para abalarem estruturas e mecanismos de (re)produção das desigualdades e das relações de forças. E mais: que também permitam a busca por alternativas às estratégias de invenção e fomento de vínculos identitários pautados por vitimismos, ressentimentos e ódios. Estes últimos, oriundos de auto representações narcísicas, desatentas à modulação da própria alteridade (e de suas relações de poder) e avessas à necessária ampliação das possibilidades de identificação e de alianças (quer com os “diferentes” invisibilizados dentro do grupo, quer com os de fora).

  Ao lado disso, é preciso atentar-se para as possíveis reações. Pedagogias e medidas institucionais voltadas a questionar a homofobia, uma maior visibilidade da diversidade sexual, juntamente com políticas de reconhecimento, valorização e respeito às homossexualidades e às múltiplas identidades de gênero, podem se fazer acompanhar pelo acirramento de manifestações homofóbicas. É possível ocorrer, por exemplo, a organização ou a mobilização de violentos grupos hiper-masculinos, assim como podem ter lugar campanhas conservadoras por parte de diferentes grupos políticos e sociais (muitos dos quais terão na homofobia um dos seus poucos elos comuns). Afinal, observa Norbert Elias (1990 [2001: 136]), para alguns pode ser motivo de forte mal-estar se um grupo socialmente estigmatizado passar a exigir igualdade não só legal e social, mas principalmente humana:

Um profundo ressentimento pode igualmente surgir [...] sobretudo entre aqueles que têm a impressão de que seu status está ameaçado, aqueles cuja consciência de seu próprio valor está ferida e que não se sentem em segurança. [...] a ordem das coisas que aparece para os grupos estabelecidos como natural começa então a vacilar. Seu status social superior, que é constitutivo do sentimento que o indivíduo tem de seu próprio valor e do orgulho pessoal de diversos de seus membros, é ameaçado pelo fato de que os membros do grupo outsider, na verdade desprezados, reivindicam não apenas uma igualdade social, mas também uma igualdade humana (ibid.: 135-136).

  Mais uma vez será central o papel da educação. Mesmo com todas as dificuldades, a escola é um espaço no interior do qual e a partir do qual podem ser construídos novos padrões de aprendizado, convivência, produção e transmissão de conhecimento, sobretudo se forem ali subvertidos ou abalados valores, crenças, representações e práticas associados a preconceitos, discriminações e violências de ordem racista, sexista, misógina e homofóbica.

 Assim, são indispensáveis estudos mais aprofundados e abrangentes que contribuam criticamente para a tessitura de articulações políticas e a construção de pedagogias voltadas, ao mesmo tempo, para desestabilizar o “narcisismo das pequenas diferenças” e para ensejar a ampliação das alianças com outras forças sociais – especialmente com aquelas dispostas a colaborar na invenção de sociabilidades e subjetividades mais livres e, ainda, comprometidas com o avanço da democracia e da consolidação dos direitos humanos em uma perspectiva intransigentemente emancipatória.

  A homofobia, com sua força desumanizadora, corrói a nossa formação e compromete a construção de uma sociedade democrática e pluralista. Ao desestabilizarmos postulados heteronormativos, poderemos fazer furos na superfície dessa (ir)racionalidade que tem na homofobia uma das suas mais poderosas e cruéis expressões.

*Doutor em Sociologia das Instituições Jurídicas e Políticas (Universidade de Milão e Macerata - Itália).

 Notas/referências
[1] Para uma reflexão sobre a fabricação dos sujeitos, vide: FOUCAULT, 1975 [1997: 143-161]; FONSECA, 1995: 130-131 e, especialmente na educação: SILVA, 1994, 1996.

[2] Por meio da heteronormatividade, a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima de expressão identitária e sexual (WARNER, 1993).

[3] Sigla cada vez mais empregada a partir da metade dos anos 1990 e fortemente ligada às políticas de identidade, LGBT possui muitas variantes, inclusive com ordens diferentes das letras. Em algumas delas, acrescenta-se um ou dois T (para distinguir travestis, transexuais e transgêneros). Em outras, um ou dois Q para “queer” e “questioning”, às vezes abreviado com um ponto de interrogação; U para “unsure” (incerto) e I para “intersexo”. No Brasil, empregam-se também o S (“simpatizantes”) e o F (“familiares”). Nos EUA: outro T (ou TS ou o número 2: “two-spirit”) e A (“aliados/as hetero”). A revista Anything That Moves (publicada entre 1990 e 2002) cunhou a sigla FABGLITTER (fetish, aliado/a, bissexual, gay, lésbica, intersexo, transgênero, transexual engendering revolution), que não entrou no uso comum.

[4] Vivências de jovens e adultos/as LGBT podem ser muito distintas, inclusive em função de gênero, cor, condição econômica etc. Vide.: RYAN e FRAPPIER, 1994; SIMÕES, 2004; ABRAMOVAY et al., 2004.

[5] Em um levantamento entre mais de 4 mil homens e mulheres homossexuais no Reino Unido, constatou-se que, nos cinco anos anteriores, um terço dos gays e um quarto das lésbicas foram vítimas de, ao menos, um ataque violento. Um terço sofreu algum assédio (incluindo ameaças ou vandalismo) e 73% sofreram abusos verbais em público (RICHARDSON e MAY, 1999).

[6] Nos EUA, segundo a Anistia Internacional, estudantes LGBT recebem em média 26 insultos por dia, 80% sofrem “grave isolamento social”, 53% ouvem comentários homofóbicos por parte de professores e da administração, 28% deixam a escola antes de obter o diploma (a evasão entre heterossexuais é de 11%), 19% são vítimas de agressão física na escola. Em 97% dos casos, não se registram intervenções por parte do corpo docente e, em 40 estados, professores/as podem ser demitidos/as por serem LGBT.

[7] Integravam o BSH os Ministérios da Educação, Cultura, Saúde, Justiça, Trabalho e Emprego, Relações Exteriores, as Secretarias Especiais dos Direitos Humanos, Políticas para Mulheres, Políticas de Promoção da Igualdade Racial. No final de 2007, por ocasião da preparação da I Conferência Nacional GLBT, eram 16 os Ministérios envolvidos.

[8] São compromissos na área da Educação: elaborar diretrizes que orientem os sistemas de ensino na implementação de ações voltadas ao respeito e à não-discriminação por orientação sexual e identidade de gênero; fomentar e apoiar cursos de formação inicial e continuada de professores sobre sexualidade; formar equipes para avaliar livros didáticos e eliminar aspectos discriminatórios por orientação sexual e identidade de gênero; estimular a produção de materiais educativos sobre orientação sexual e identidade de gênero e superação da homofobia; apoiar e divulgar a produção de materiais específicos para a formação de professores; divulgar informações científicas sobre sexualidade; estimular a pesquisa e a difusão de conhecimentos que contribuam para o enfrentamento da violência e da discriminação de LGBT; instituir um subcomitê, com participação do movimento LGBT, para acompanhar e avaliar a implementação do BSH. Para um relatório das ações do MEC no biênio 2005-2006 no âmbito do BSH, vide: JUNQUEIRA et al., 2007.

[9] FOUCAULT, 1976 [1988]. Vide também: BUTLER, 2003: 101-102.

[10] “A linguagem, as táticas de organização e de classificação, os distintos procedimentos das disciplinas escolares são, todos, campos de um exercício (desigual) de poder. Currículos, regulamentos, instrumentos de avaliação e ordenamento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam os sujeitos” (LOURO, 2004a: 84-85). Vide também: SILVA, 1996.

[11] A inexistência de um arsenal consistente de dados acerca da homofobia nas escolas brasileiras não é índice da inexistência do problema. Pelo contrário, a homofobia institucional tem alimentado, entre muitos formuladores de políticas educacionais, uma postura de marcada indiferença ou de incapacidade de perceber o quadro de preconceito, discriminação e violência homofóbica.

[12] Outras pesquisas revelaram incidência igualmente elevada de homofobia nas escolas brasileiras. Na 8ª Parada Livre de Porto Alegre, em 2004, a escola compareceu em primeiro lugar como espaço de discriminação contra LGBT. Cerca de 40% de jovens de 15 a 21 anos apontaram discriminação por parte de docentes e colegas (KNAUTH et al., 2006). Em 2005, na 9ª Parada GLBT de São Paulo, 32,6% das pessoas (44,7% dos homens bissexuais) identificaram escola e faculdade como espaços de marginalização e exclusão de LGBT e 32,7% sofreram discriminação por parte de docentes ou colegas (CARRARA et al., 2006: 40-42). No mesmo ano, na 8ª Parada de Belo Horizonte, a escola figurou como a instituição com maior frequência de manifestações homofóbicas: 34,5% declararam sofrer ali frequentes ou eventuais discriminações – a escola perde apenas para espaços não-institucionais: locais públicos e de diversão (PRADO et al., 2006: 54).

[13] Por ex.: The Global Alliance for LGBT Education (GALE); Gay, Lesbian, and Straight Education Network (GLSEN), nos EUA; Gay and Lesbian Educators of British Columbia (GALE-BC), no Canadá; Gay and Lesbian Educational Equity (GLEE Project), na União Européia; Transfer of Information to Combat Discrimination Against Gays and Lesbians in Europe (TRIANGLE), na Alemanha, Áustria, Holanda e Itália; Respectme, no Reino Unido; centenas de programas como: Harvey Milk School, em Nova York; Triangle Program, em Toronto, Camp Fyrefly, em Edmonton (Canadá) etc.

[14] Com distintos graus de consistência, medidas em favor dos direitos de LGBT vêm sendo adotadas em diferentes níveis governamentais e administrativos em muitos países: União Européia, Austrália, Nova Zelândia, Ilhas Fiji, África do Sul, EUA, Canadá, Argentina, Colômbia, Equador e México, entre outros.

[15] Os “Princípios de Yogyakarta” (2006) são um bom exemplo [www.yogyakartaprinciples.org/principles_ sp.pdf]. Vale observar ainda que o Brasil tem sido um importante ator nesse cenário. O país levou o tema para a Conferência Regional das Américas (Santiago, 2000) e defendeu-o na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (Durban, 2001). Em 2004, apresentou a Resolução “Orientação Sexual e Direitos Humanos” no Conselho de Direitos Humanos da ONU e é signatário das “Declarações” da Nova Zelândia (2005) e da Noruega (2006). O programa “Brasil sem Homofobia” constitui um marco para a formulação de políticas públicas nesta área.

[16] Sobre a “heterossexualização compulsória”, vide: BUTLER, 2003.

[17] Tais brincadeiras camuflam injúrias e insultos, autênticos instrumentos de objetivação (BOURDIEU, 1983: 73). São jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-se no corpo e na memória e moldam as relações com o mundo (ÉRIBON, 2008:27-28). Sobre insultos, vide também: FLYNN, 1977; PRESTON e STANLEY, 1987. Sobre a ambiguidade do papel do humor na afirmação ou na crítica a estereótipos e hierarquizações opressivas, vide, por ex.: POSSENTI, 2001: 72-74, 2002a e 2002b: 227-239.

[18] Para um contraponto, cf.: FERREIRA, 2006.

[19] Sobre a “dominação masculina”, vide: BOURDIEU, 1998, 1999 e BADINTER, 2005. Para uma reflexão sobre a “masculinidade hegemônica” e outras masculinidades, vide: CONNEL, 2005.

[20] CORRIGAN, 1991; WEST, 1999; ROSEMBERG, 2001: 65.

[21] Existem ainda outros fatores que, com frequência, levam meninos e rapazes a apresentarem piores rendimentos escolares e a interromperem ou a abandonarem definitivamente seus estudos. Merecem menção a exploração do trabalho infantil e juvenil masculino remunerado e os fenômenos ligados à “masculinização da violência”, em que vemos sobretudo rapazes serem atraídos para a criminalidade violenta, excluindo-os da escola e, não raro, prematuramente da vida. Vide, por ex.: WAISELFISZ, 2002; DOWDNEY, 2003. Para uma crítica das interpretações que vinculam, de modo mecânico e linear, o insucesso escolar das meninas ao trabalho doméstico, vide: ROSEMBERG, 2002: 217.

[22] Embora minoritário, o mau rendimento escolar feminino, por outro lado, reforça o preconceito segundo o qual as mulheres não devem fazer parte dos espaços de construção do saber. A reprovação dos meninos costuma ser percebida como “coisa de moleque”, “coisa da idade”, “rebeldia”; a das meninas, como sinal de “burrice” e “incompetência”, o que evidenciaria que elas “não dão para a coisa” e “resta-lhes apenas o lar” (ABRAMOWICZ, 1995: 45). Além disso, não podemos esquecer que, mesmo quando as meninas apresentam índices de desempenho escolar relativamente superiores aos de meninos, ambos continuam submetidos aos cânones heteronormativos. A construção das feminilidades e das masculinidades na escola carece de estudos mais abrangentes e aprofundados, bem como de referências mais plurais e mais sensíveis à desestabilização e à superação das desigualdades de gênero nas relações escolares (REAY, 2001; CARVALHO, 2005: 271).

[23] Também nos grandes centros brasileiros o gênero e as normas de gênero reafirmam-se como organizadores da apreensão sobre a homossexualidade, articulando-se com outras variáveis, tais como nível de escolaridade, classe, raça/etnia, religião, idade etc. A pesquisa Gravad confirmou uma menor rejeição à homossexualidade entre as mulheres: cerca de um terço delas a rejeitam, contra a quase metade dos homens (apenas entre pentecostais as cifras quase se igualam). A aceitação da homossexualidade aumenta à medida que se elevam os níveis de escolaridade e de renda, mas em proporções distintas segundo o sexo/ gênero: apresentam postura mais aberta cerca de 90% das mulheres e 69% dos homens cujas mães têm nível superior. Entre os homens, mantém-se alta a definição da homossexualidade como “doença”: 22,7%, contra 7,4% das mulheres. É extremamente alta a rejeição entre os homens com baixa escolaridade e entre os que ainda não se iniciaram sexualmente: 72,9% e 62%. A pesquisa foi realizada, em 2002, com jovens de 18 a 24 anos, em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. Vide: HEILBORN et al., 2006: 224-227 e segs.

[24] Faltam pesquisas no Brasil sobre os efeitos da homofobia sobre o professorado homossexual, bissexual, travesti e transexual, muito embora se possa supor que vão muito além de questões de ordem trabalhista. Para um conjunto estimulante de testemunhos de professores/as LGBT nos EUA, vide: JENNINGS, 2005.

[25] Sobre bem-estar subjetivo, vide: HAYDEN e BLAYA, 2002; RANGEL, 2004; sobre “bullying”: TATTUM, 1993.

[26] A comunidade escolar, em geral, tem se demonstrado mais aberta para discutir a sexualidade no plano da prevenção e não no da promoção da saúde ou no dos direitos humanos. As dificuldades da escola em transcender esses limites e abordar mais corajosamente questões relativas a sexualidade, diversidade sexual, sexismo, misoginia, homofobia e racismo expõem os/as estudantes a situações de maior vulnerabilidade física e psicológica, inclusive em relação à saúde sexual e reprodutiva.

[27] Vide: BRICKLEY et al., 1999; BAUER e GOLDSTEIN, 2003.

[28] Àqueles que insistem em dizer que ainda há escolas sem banheiros e que essa deveria ser nossa prioridade, vale lembrar que de pouco adiantará a travestis e transexuais construirmos banheiros em escolas nas quais não lhes será garantido o direito de acesso. Vale lembrar que a espacialização, que pressupõe interdições e naturalizações, é um dos procedimentos cruciais dos dispositivos de poder.

[29] É preciso, no entanto, lembrar de importantes experiências educacionais de inclusão e permanência de travestis e transexuais. O “Círculo de Leituras – Um Sonho Possível na Inclusão de Transgêneros”, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 2003, chegou a receber o selo da Unesco como projeto que pode ser apresentado como modelo (SÃO PAULO, 2003 e s/d).

[30] É necessário atentar-se para as dificuldades de pessoas homossexuais com deficiência física para encontrarem parceiros/as e realizarem-se afetiva e sexualmente em comunidades gays, no interior das quais vige uma ultravalorização da beleza física. Tal quadro foi muito bem tratado em dois documentários: “One Night Sit” (Carmelo Gonzales e Diana Naftal, EUA, 2004) e “Untold Desires” (Sarah Barton, Austrália, 1994). Evidentemente, tal fenômeno não se encontra circunscrito a essas comunidades.

[31] A obsessão pelo corpo “sarado” (não necessariamente saudável) gravita em torno de uma nova moralidade que, paradoxalmente, quanto mais propugna a autonomia individual e a libertação física e sexual, mais se submete e se conforma a um determinado padrão estético corporal: o da “boa forma” (GOLDENBERG, 2002: 25). Sobre a estética, o amor e a amizade no “universo gay”, vide: EUGENIO, 2006: 158-176.
[32] Vide, por ex.: CORRIGAN, 1991 e BLUMENFELD, 1992. É preciso lembrar que importantes estudos realizados em diversos países europeus e na América do Norte mostram que a incidência do risco de suicídio entre adolescentes é extremamente maior entre homossexuais (em função da homofobia e não em virtude de uma implausível associação naturalizante entre homossexualidade e comportamento suicida). Nos EUA, 62,5% dos adolescentes que tentam suicídio são homossexuais. Ali e no Canadá, pessoas entre 15 e 34 anos homossexuais têm de 4 a 7 vezes mais riscos de se suicidarem do que seus coetâneos heterossexuais. Este risco é acrescido de 40% no caso das jovens lésbicas (BAGLEY e RAMSEY, 1997). Na França, onde o suicídio é a segunda causa de mortes entre pessoas de 15 a 34 anos, as possibilidades de um homossexual terminar com sua vida é 13 vezes maior do que as de um seu coetâneo heterossexual de mesma condição social. De cada três indivíduos que cometem uma tentativa de suicídio, um é homossexual (Libération, 07/03/2005). Ali, já tentaram suicídio pelo menos uma vez 27% dos jovens menores de 20 anos que se declaram homossexuais. Esta cifra estabiliza-se em torno dos (de todo modo altos) 15% entre homossexuais com mais de 35 anos. Todas elas, porém, sofrem um incremento nos casos em que se verifica rejeição familiar e, ainda mais, naqueles em que o/a jovem tenha sido vítima de agressão homofóbica (VERDIER e FIRDION, 2003). Afasta-se, assim, todo vínculo causal entre homossexualidade e comportamento suicida: ao contrário, o que se observa é o impacto da homofobia na definição dos índices de suicídios (MILLER, 1992).

[33] Sobre as estratégias adotadas por LGBT em face das situações de violência homofóbica no cotidiano escolar, vide, por ex.: HUMAN WATCH, 2001: item IV; CAETANO, 2005; RAMIRES NETO, 2006: cap. 4.

[34] Não se trata apenas de uma diferença de estilo. Esta frase e a anterior, embora pertençam à mesma “formação ideológica”, integram diferentes “formações discursivas”: ambas expressam-se igualmente homofóbicas, mas apontam para a produção de efeitos diferentes. Vale ainda notar que “É legal porque é gay” também exprime preconceito em relação à homossexualidade. Vide: ORLANDI, 1987: 115-133, passim.

[35] Sobretudo para as lésbicas, a adoção de práticas compensatórias deriva em grande parte da pressão e da violência a que estão submetidas no ambiente familiar (ALMEIDA, 2005: 181, 215). São comuns os depoimentos que apresentam pessoas LGBT como “filhos dedicados”, “irmãs atenciosas”, arrimos de família.

[36] Há muitos relatos sobre estudantes “superafetados”, “chamativos demais”, “provocantes”, “irritadiços”, “sempre prontos para responder à menor insinuação”. Trata-se de alguém em contínuo (e desgastante) estado de alerta, externando atitudes que, ao invés, mereceriam ser acolhidas como um desesperado pedido de ajuda.

[37] O termo “indiferença” é neste caso empregado como sinônimo de ausência de interesse ou preocupação e não no sentido adotado por Halvorsen (1996), que oportunamente, em outro contexto, refere-se à “visibilidade indiferente” como resultado da conquista pelos/as homossexuais da igualdade de direitos.

[38] Sobre violência simbólica, vide: BOURDIEU, 1983, 1989, 1992 e 1999. Sobre “homofobia interiorizada”, vide: BORRILLO, 2001: 107-111; CASTAÑEDA, 2007: 142-156.

[39] Expressão adotada por Maria Aparecida Bento para denominar um estado de desconforto, inconformidade ou revolta vivenciado por alguém somente se a suposta vítima de alguma injustiça é por ele/a identificada como pertencente ao seu mesmo grupo. Vide: BENTO, 2003: 25-57.

[40] Reconhecer a existência desse sofrimento não comporta legitimar e nem mesmo atenuar a gravidade da violência contra pessoas LGBT. Isso, infelizmente, tem ocorrido em alguns países (em especial, nos EUA e no Reino Unido), cujos sistemas legais têm acolhido a tese do “pânico homossexual”. Segundo ela, a investida “inoportuna e indesejada” por parte de um/a “homossexual” seria responsável por levar o/a agressor/a, de maneira súbita e incontornável, a “perder o autocontrole” e atacar a vítima/culpada.

[41] Analogamente, vale observar que, ao contrário do que crêem alguns, o racismo e outras crenças e formas de discriminação nem sempre necessitam da presença física do “outro” para vigorarem. O ainda forte antisemitismo na Polônia de hoje é uma evidência disso. O país quase chega a ser um caso de “anti-semitismo sem judeus” por antonomásia. A maior comunidade hebraica da Diáspora (com mais de 3,2 milhões de judeus, em 1939) não passava, nos anos 1960, de 2 a 15 mil indivíduos. Não por acaso, também é um país de fortes manifestações homofóbicas. Para uma análise do quadro polonês, vide: LIÈGE, 2000.

[42] BOURDIEU e PASSERON, 1970 [1982]; BONNEWITZ, 2003: 119.

[43] Ao se desconsiderar um universo muito mais pluralizado, múltiplo e dinâmico do que as categorias “homossexual”, “homossexualidade”, entre outras, geralmente supõem, também se contribui para produzir uma invisibilidade em relação às homossexualidades. A este propósito Costa (1992: 44) observa: “como a heterossexualidade é uma rubrica que serve para designar fatos tão disparatados [...], assim também homossexualidade designa experiências [em que] sequer a atração pelo mesmo sexo é suficiente, enquanto predicado definitório de cada uma delas. A diversidade de atos, sentimentos e auto-definições incluídos nessa etiqueta, quando examinada de perto, mostra que a suposta homogeneidade teorizada [ou politicamente defendida] nada tem a ver com a heterogeneidade vivida”. Uma coisa é a valorização das identidades gay e lésbica para fortalecê-las diante do preconceito; outra é afirmar que elas sejam as únicas identidades possíveis ou desejáveis para todos os indivíduos homoeroticamente orientados (MACRAE, 1990).

[44] A invisibilidade lésbicas materializa-se ainda “tanto no menor número de estudos e pesquisas sobre a vivência lésbica – quando comparados aos estudos sobre homossexualidade masculina – quanto no maior número de homens com visibilidade social e militância homossexual ostensivas” (MELLO, 2005: 201). Vide: ALMEIDA, 2005; MUNIZ, 1992; PORTINARI, 1989; RICH, 1994; SWAIN, 2000.

[45] O que se diz, por ex., acerca das lésbicas negras? Quais representações circulam sobre judias, muçulmanas ou chinesas lésbicas? São distintas as economias de visibilidade, em face da racialização da sexualidade do outro.

[46] Sobre as lésbicas “mais masculinizadas”, diz Almeida (2005: 166): “As ‘fanchas’ [...] [têm] cada vez menor lugar no cenário das novas exigências colocadas às lésbicas. [...] Embora ela possa curiosamente [conservar um] lugar substantivo na cultura sexual das lésbicas, [...] ela é mal-vinda, especialmente nas camadas médias, para o estabelecimento de relações duradouras e públicas. Isso ocorre tanto por rejeição estética das próprias parceiras, quanto por traduzir mais visivelmente o risco de relações assimétricas, ou ainda, por restringir as possibilidades de manipulação do estigma [...], [por meio] de estratégias de ocultamento do vínculo”.

[47] Necessitamos de mais estudos sobre as tensões relativas à produção de configurações identitárias entre mulheres bissexuais na sociedade brasileira.

[48] Diante da crise da família patriarcal e da eclosão de novos arranjos familiares (BERQUÓ e OLIVEIRA, 1989; CARVALHO, 1995; CASTELLS, 1999: cap. 4; RIBEIRO e RIBEIRO, 1995; ROUDINESCO, 2003; VAITSMAN, 1994; MELLO, 2005), cabe questionar a pertinência de a escola, a mídia e outros espaços sociais continuarem calcando as celebrações dos Dias das Mães e dos Pais no modelo familhista tradicional.

[49] Fenômenos como os da “homoparentalidade” (termo cunhado, em 1997, pela Association de Parents et Futurs Parents Gays et Lesbiens) fazem com que até mesmo as crianças tragam para dentro da sala de aula a discussão de temas relativos aos novos arranjos familiares, à homoafetividade, aos direitos conjugais e parentais, entre outros. Sobre homoparentalidade, vide: HALVORSEN, 1996; GROSS, 1999; FERREIRA, 2004; HEILBORN, 2004; MEDEIROS, 2004; TARNOVSKI, 2004 e UZIEL, 2004. Sobre políticas educacionais inclusivas de famílias homoparentais: BRICKLEY et al., 1999; BAUER e GOLDSTEIN, 2003.



















 

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