quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Domenico Losurdo: uma crítica à categoria ''totalitarismo''

por João Gabriel Bordin para o blog Laboratório Dialético


Domenico Losurdo (Sannicandro di Bari, 1941) é um filósofo marxista italiano que leciona na Universidade de Urbino, na Itália. Estudou em Tubinga (Alemanha) e em Urbino. Doutorou-se com uma tese sobre Karl Rosenkranz.



 Domenico Losurdo está entre os intelectuais marxistas que criticam a categoria de totalitarismo, tal como ela é entendida pelo pensamento liberal (vale notar que a acepção vulgar que essa categoria adquiriu no senso-comum/cotidiano é reflexo da acepção teórica que ela adquiriu, sobretudo, a partir da Guerra Fria e pelos porta-vozes do pensamento liberal). Neste sentido, pode-se iniciar a argumentação de Losurdo pelo fim: o contexto histórico-político da Guerra Fria é determinante na definição do termo. É digno de nota que a relação crítica se inverte: se os teóricos do totalitarismo imaginavam-se em oposição e fazendo uma crítica aos regimes políticos totalitários, a categoria que eles erigiram para tanto volta-se contra eles próprios e, no contexto do mundo dividido em dois campos ideológicos antagônicos, torna-se arma ideológica de combate contra o comunismo. É sintomático, portanto, que os teóricos do totalitarismo façam vista grossa, ou mesmo pareçam ignorar completamente, a própria situação dos países onde vivem, nominalmente os países de língua inglesa. Se estendermos a mesma lógica argumentativa, por eles empregada para analisar a Alemanha nazista e a URSS stalinista, aos países tidos por eles como o avesso do totalitarismo, baluarte da liberdade e da igualdade, veremos que há muitos pontos formais de contato. Mas tal procedimento seria um erro da nossa parte, não porque estaríamos partilhando, com os totalitaristas, da caracterização feita por eles – ou seja, de que Alemanha nazista e URSS stalinista são exemplos clássicos/prototípicos de totalitarismo em oposição às democracias ocidentais –, mas antes porque estaríamos fazendo concessão ao seu método formalista. Fazendo comparações formais, ser-nos-ia fácil estabelecer aspectos paralelos e superpostos entre regimes totalitários e regimes democráticos. Causa estranheza, portanto, que os teóricos do totalitarismo não tenham nem mesmo conseguido tirar as consequências necessárias do próprio método falho com que analisaram o fenômeno – a explicação que propuseram, portanto, está duplamente limita: metodológica e ideologicamente.

Essa tenaz relutância em ver nas democracias ocidentais (sobretudo Inglaterra e EUA) elementos cujo parentesco com regimes ditos totalitários salta aos olhos só pode ser explicado, com efeito, pelo campo ideológico no qual os totalitaristas se movem, a saber, o liberalismo político-filosófico (aí incluído o liberalismo econômico); ou, se quiser, o ponto de vista burguês. É sob esta ótica que Domenico Losurdo questiona, por exemplo, o fato de que os teóricos do totalitarismo elejam, como aspecto central do fenômeno, o partido único e não o mito racial, pedra angular do nazismo. Ora, não o fazem porque admitir que o racismo, em suas implicações ideológicas e políticas gerais, constituiu a base do nazismo acabaria por expor o fato de que, na base dessa ideologia, não se encontra exclusivamente o pangermanismo, mas também a crença inglesa na superioridade aristocrática do povo inglês, a ciência eugênica que alcançou seu florescimento máximo nos Estados Unidos, etc.

 A teoria do totalitarismo é, portanto, essencialmente seletiva, e cumpre uma função ideológica no contexto pós-segunda guerra. Deve-se ressaltar aqui que Losurdo não olvida as especificidades que a categoria totalitarismo possui em Arendt, intelectual que é, aliás, a expoente mais insigne dessa corrente teórica. Sua obra Origens do totalitarismo pode ser dividida em duas partes (ou dois livros, como se refere Losurdo) que não se fundem organicamente ou só o fazem de modo muito problemático. O primeiro “livro” (digamos assim para não confundir com as três partes que compõem o livro de Arendt), constituído pelas duas primeiras partes do livro, foi escrito num clima ideológico anterior à Guerra Fria e exprime um entendimento sobre a URSS muito diferente daquele que Arendt expressa no segundo livro, quando os soviéticos tornaram-se manifestamente inimigos do “mundo livre”. Se no primeiro livro Arendt explica o totalitarismo a partir da lógica imperialista e das condições culturais onde o fenômeno floresceu, e encontra, deste modo, tais fatores também na Inglaterra, na França e nos EUA; no segundo livro essas conclusões acabam sendo escamoteadas, tornando possível estender o fenômeno até a URSS ao mesmo tempo em que se o elimina daqueles países. A ideologia total vai ser, então, buscada diretamente em Marx e em sua filosofia da história, supostamente teleológica e desumanizante; vai ser buscada também na concepção leninista de partido; etc. De resto, a disjunção e inconsistência entre os dois “livros” de Arendt é evidente e foi percebida pela maioria dos críticos, inclusive os que partilham das conclusões da autora.

 Por fim, à guisa de epílogo, transcrevo aqui os dois primeiros parágrafos do penúltimo item do artigo de Losurdo, os quais oferecem uma síntese da sua crítica à categoria totalitarismo:

“O defeito fundamental da categoria de totalitarismo é transformar uma descrição empírica, relativa a certas categorias determinadas, numa dedução lógica de caráter geral. Não há dificuldades em constatar as analogias entre URSS staliniana e Alemanha nazista; a partir delas, é possível construir uma categoria geral (totalitarismo) e sublinhar a presença nos dois países do fenômeno assim definido: mas transformar esta categoria na chave de explicação dos processos políticos verificados nos dois países é um salto assustador. Sua arbitrariedade deveria ser evidente, por duas razões fundamentais. Já vimos a primeira: de modo sub-reptício as analogias que subsistem entre URSS e Terceiro Reich quanto à ditadura do partido único são consideradas decisivas, ao passo que são ignoradas e removidas analogias no plano da política eugênica e racial, que permitiriam instruir conexões bem diferentes.

“Quanto à segunda razão, mesmo se concentramos a atenção sobre a ditadura do partido único nos dois países geralmente postos em confronto, por que remeter à afinidade de suas ideologias antes que à semelhança das situações políticas (o estado de exceção permanente) ou ao contexto geopolítico (a particular vulnerabilidade) que os dois países tinham de enfrentar? Parece-me evidente, em vez disso, que como fundamento do fenômeno totalitário, juntamente com as ideologias e as tradições políticas, age poderosamente a situação objetiva.” (2006, p.76)

 Em suma, o crítico chama a nossa atenção, quanto ao problema da categoria totalitarismo, para ao menos três aspectos: 1) a inconsistência do procedimento metodológico que consiste em fazer comparações formais entre características arbitrariamente abstraídas do fenômeno; 2) a existência de uma dimensão ideológica, o liberalismo, que não apenas inspira e anima as teorias sobre o totalitarismo, como também serve, no interior desta categoria, de arma contra ideologias antagônicas, notadamente o comunismo; e 3) a necessidade explicar o fenômeno totalitário a partir das condições sócio-históricas objetivas que lhe dão origem.
Leia o artigo de Domenico Losurdo aqui

domingo, 23 de agosto de 2015

O nazifascismo e a ascensão da extrema-direita nos anos 30

O texto abaixo corresponde ao capítulo 4 do livro ''Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991'', do falecido historiador britânico E. J. Hobsbawm. 

Em maio de 1945, a besta do nazifascismo finalmente perecia -- sob as mãos e armas do glorioso Exército Vermelho.

 De todos os fatos da Era da Catástrofe, os sobreviventes do século XIX ficaram talvez mais chocados com o colapso dos valores e instituições da civilização liberal cujo progresso seu século tivera como certo, pelo menos nas partes “avançadas” e “em avanço” do mundo. Esses valores eram a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso com um governo constitucional com ou sob governos e assembleias representativas livremente eleitos, que garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, publicação e reunião. O Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão, do debate público, da educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente de perfeição) da condição humana. Esses valores, parecia claro, tinham feito progresso durante todo o século, e estavam destinados a avançar ainda mais. Afinal, em 1914 mesmo as duas últimas autocracias da Europa, a Rússia e a Turquia, tinham feito concessões na direção de um governo constitucional, e o Irã chegara a tomar emprestada uma Constituição da Bélgica. Antes de 1914, esses valores só tinham sido contestados por forças tradicionalistas como a Igreja Católica Romana, que ergueu barricadas defensivas de dogmas contra as forças superiores da modernidade; por uns poucos rebeldes intelectuais e profetas do apocalipse, sobretudo de “boas famílias” e centros estabelecidos de cultura, de certo modo parte da civilização que contestavam; e pelas forças da democracia, no todo um fenômeno novo e perturbador. (Ver A era dos impérios.) A ignorância e atraso das massas, seu compromisso com a derrubada da sociedade burguesa pela revolução social, e a irracionalidade humana latente tão facilmente explorada por demagogos, eram de fato motivo de alarme. Contudo, o mais perigoso desses novos movimentos de massa, o movimento trabalhista socialista, era na verdade, tanto em teoria como na prática, tão apaixonadamente comprometido com os valores da razão, ciência, progresso, educação e liberdade individual quanto qualquer outro. A medalha do Dia do Trabalho do Partido Social-Democrata alemão mostrava Karl Marx de um lado e a Estátua da Liberdade do outro. O desafio deles era à economia, não ao governo constitucional e à civilidade. É difícil imaginar um governo encabeçado por Victor Adler, August Bebel ou Jean Jaurès como o fim da “civilização como a conhecemos”. De qualquer modo, tais governos ainda pareciam remotos.

 De fato, as instituições da democracia liberal haviam avançado politicamente, e a erupção de barbarismo em 1914-8 aparentemente apenas apressou esse avanço. Com exceção da Rússia soviética, todos os regimes que emergiam da Primeira Guerra Mundial, novos e velhos, eram basicamente regimes parlamentares representativos eleitos, mesmo a Turquia. A Europa, a Oeste da fronteira soviética, consistia inteiramente nesses Estados em 1920. Na verdade, as instituições básicas do governo liberal constitucional, eleições para assembleias representativas e/ou presidentes, eram quase universais no mundo de países independentes nessa época, embora devamos lembrar que os cerca de 65 Estados independentes do período entreguerras tinham sido um fenômeno basicamente europeu e americano: um terço da população do mundo vivia sob domínio colonial. Os únicos Estados que não tiveram quaisquer eleições no período 1919-47 eram fósseis políticos isolados, a saber, Etiópia, Mongólia, Nepal, Arábia Saudita e Iêmen. Outros cinco Estados que tiveram apenas uma eleição nesse período, o que não indica uma forte inclinação para a democracia, eram o Afeganistão, a China do Kuomintang, a Guatemala, o Paraguai e a Tailândia, então ainda conhecida como Sião, mas a própria existência de eleições é indício de pelo menos alguma penetração de ideias políticas liberais, pelo menos em teoria. Não se está sugerindo, claro, que a simples existência ou freqüência de eleições prove mais que isso. Nem o Irã, que teve seis eleições depois de 1930, nem o Iraque, que teve três, podiam, mesmo então, ser considerados bastiões da democracia. 

 Mesmo assim, os regimes eleitorais representativos eram bastante frequentes. E no entanto os 23 anos entre a chamada “Marcha sobre Roma” de Mussolini e o auge do sucesso do Eixo na Segunda Guerra Mundial viram uma retirada acelerada e cada vez mais catastrófica das instituições políticas liberais. Em 1918-20, assembleias legislativas foram dissolvidas ou se tornaram ineficazes em dois Estados europeus, na década de 1920 em seis, na de 1930 em nove, enquanto a ocupação alemã destruía o poder constitucional em outros cinco durante a Segunda Guerra Mundial. Em suma, os únicos países europeus com instituições políticas adequadamente democráticas que funcionaram sem interrupção durante todo o período entreguerras foram a Grã-Bretanha, a Finlândia (minimamente), o Estado Livre Irlandês, a Suécia e a Suíça. 

 Nas Américas, a outra região de Estados independentes, a situação era mais confusa, mas não chegava a sugerir um avanço geral das instituições democráticas. A lista de Estados consistentemente constitucionais e não autoritários no hemisfério ocidental era curta: Canadá, Colômbia, Costa Rica, os EUA e a hoje esquecida “Suíça da América Latina” e sua única democracia verdadeira, o Uruguai. O melhor que podemos dizer é que os movimentos entre o fim da Primeira Guerra Mundial e o da Segunda foram às vezes para a esquerda, às vezes para a direita. Quanto ao resto do globo, grande parte do qual consistia em colônias, e portanto não liberais por definição, afastou-se das constituições liberais, na medida em que algum dia as tinham tido. No Japão, um regime liberal moderado deu lugar a um nacionalista-militarista em 1930-1. A Tailândia deu alguns poucos passos em direção a um governo constitucional, e a Turquia foi tomada pelo modernizador militar progressista Kemal Atatürk no início da década de 1920, um homem do tipo que não permite que eleições atrapalhem seu caminho. Nos continentes da Ásia, África e Australásia, só a Austrália e a Nova Zelândia eram consistentemente democráticas, pois a maioria dos sul-africanos permaneceu fora do âmbito da constituição do homem branco. 

 Em resumo, o liberalismo fez uma retirada durante toda a Era da Catástrofe, movimento que se acelerou acentuadamente depois que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha em 1933. Tomando-se o mundo como um todo, havia talvez 35 ou mais governos constitucionais e eleitos em 1920 (dependendo de onde situamos algumas repúblicas latino-americanas). Até 1938, havia talvez dezessete desses Estados, em 1944 talvez doze, de um total global de 65. A tendência mundial parecia clara. 

 Talvez valha a pena lembrar que nesse período a ameaça às instituições liberais vinha apenas da direita política, já que entre 1945 e 1989 se supôs, quase como coisa indiscutível, que vinha essencialmente do comunismo. Até então, o termo “totalitarismo”, inicialmente inventado como uma descrição ou autodescrição do fascismo italiano, era aplicado quase só a esses regimes. A Rússia soviética (a partir de 1922 URSS) estava isolada, e não podia e nem queria, após a ascensão de Stalin, ampliar o comunismo. A revolução social sob a liderança leninista (ou qualquer outra) deixou de espalhar-se depois que a onda inicial do pós-guerra refluiu. Os movimentos social-democratas (marxistas) tornaram-se mais forças mantenedoras do Estado que forças subversivas, e não se questionava seu compromisso com a democracia. Nos movimentos trabalhistas da maioria dos países os comunistas eram minorias, e onde eram fortes, na maior parte dos casos foram, ou tinham sido, ou iriam ser suprimidos. O medo da revolução social, e do papel dos comunistas nela, era bastante real, como provou a segunda onda de revolução durante e após a Segunda Guerra Mundial, mas nos vinte anos de enfraquecimento do liberalismo nem um único regime que pudesse ser chamado de liberal-democrático foi derrubado pela esquerda. [1] O perigo vinha exclusivamente da direita. E essa direita representava não apenas uma ameaça ao governo constitucional e representativo, mas uma ameaça ideológica à civilização liberal como tal, e um movimento potencialmente mundial, para o qual o rótulo “fascismo” é ao mesmo tempo insuficiente mas não inteiramente irrelevante.

 Insuficiente porque de modo algum todas as forças que derrubavam os regimes liberais eram fascistas. E relevante porque o fascismo, primeiro em sua forma original italiana, depois na forma alemã do nacional-socialismo, inspirou outras forças antiliberais, apoiou-as e deu à direita internacional um senso de confiança histórica: na década de 1930, parecia a onda do futuro. Como foi dito, por um expert no assunto: “Não foi por acaso [...] que os ditadores da realeza da Europa Oriental, burocratas e oficiais, e Franco (na Espanha) imitaram o fascismo” (Linz, 1975, p. 206).

 As forças que derrubavam os regimes liberal-democráticos eram de três tipos, omitindo a forma mais tradicional de golpes militares que instalavam ditadores ou caudilhos latino-americanos, sem qualquer coloração política a priori. Todos eram contra a revolução social, e na verdade uma reação contra a subversão da velha ordem social em 1917-20 estava na raiz de todos eles. Todos eram autoritários e hostis às instituições políticas liberais, embora às vezes mais por motivos pragmáticos do que por princípio. Reacionários anacrônicos podiam proibir alguns partidos, especialmente o comunista, mas não todos. Após a derrubada da breve república soviética húngara de 1919, o almirante Horthy, chefe do que ele afirmava ser o reino da Hungria, apesar de não mais ter rei ou marinha, governou um Estado autoritário que continuou sendo parlamentar, mas não democrático, no velho sentido oligárquico do século XVIII. Tudo tendia a favorecer os militares e promover a polícia, ou outros grupos de homens capazes de exercer coerção física, pois estes eram o principal baluarte contra a subversão. E de fato, o apoio deles foi muitas vezes essencial para a direita chegar ao poder. Todos tendiam a ser nacionalistas, em parte por causa do ressentimento contra Estados estrangeiros, guerras perdidas ou impérios insuficientes, e em parte porque agitar bandeiras nacionais era um caminho tanto para a legitimidade quanto para a popularidade. Apesar disso, havia diferenças. 

 Autoritários ou conservadores anacrônicos — o almirante Horthy, o marechal Mannerheim, vencedor da guerra civil de brancos versus vermelhos na recém-independente Finlândia; o coronel, depois marechal Pilsudski, libertador da Polônia; o rei Alexandre, antes da Sérvia, agora da recém-unida Iugoslávia; e o general Francisco Franco da Espanha — não tinham qualquer programa ideológico particular, além do anticomunismo e dos preconceitos tradicionais de sua classe. Podiam descobrir-se aliados à Alemanha de Hitler e a movimentos fascistas em seus países, mas só porque na conjuntura entreguerras a aliança “natural” era a feita por todos os setores da direita política. Claro que considerações nacionais podiam entremear-se a essa aliança. Winston Churchill, um tory deveras direitista nessa época, embora não típico, manifestou alguma simpatia pela Itália de Mussolini, e não conseguiu forçar-se a apoiar a República espanhola contra as forças de Franco, mas a ameaça da Alemanha à Grã-Bretanha o tornou o paladino da união antifascista. Por outro lado, reacionários tradicionais como ele estavam sujeitos a ter de enfrentar a oposição de movimentos autenticamente fascistas, às vezes com substancial apoio das massas.

 Um segundo tipo da direita produziu o que se tem chamado de “estatismo orgânico” (Linz, 1975, pp. 277, 306-13), ou regimes conservadores, não tanto defendendo a ordem tradicional, mas deliberadamente recriando seus princípios como uma forma de resistir ao individualismo liberal e à ameaça do trabalhismo e do socialismo. Por trás disso havia uma nostalgia ideológica de uma imaginada Idade Média ou sociedade feudal, em que se reconhecia a existência de classes ou grupos econômicos, mas a terrível perspectiva da luta de classes era mantida a distância pela aceitação voluntária de uma hierarquia social, pelo reconhecimento de que cada grupo social ou “estamento” tinha seu papel a desempenhar numa sociedade orgânica composta por todos, e deveria ser reconhecido como uma entidade coletiva. Isso produziu vários tipos de teorias “corporativistas”, que substituíam a democracia liberal pela representação de grupos de interesse econômico e ocupacional. Às vezes esta era descrita como participação ou democracia “orgânica”, e portanto melhor que a real, mas de fato combinava-se sempre com regimes autoritários e Estados fortes governados de cima, em grande parte por burocratas e tecnocratas. Invariavelmente limitava ou abolia a democracia eleitoral (“Democracia baseada em corretivos corporativos”, na expressão do prende húngaro conde Bethlen) (Ranki, 1971). Os exemplos mais acabados desses Estados corporativos foram encontrados em alguns países católicos, notadamente Portugal do professor Oliveira Salazar, o mais longevo de todos os regimes antiliberais da direita na Europa (1927-74), mas também na Áustria entre a destruição da democracia e a invasão de Hitler (1934-8), e, em certa medida, na Espanha de Franco. Contudo, se os regimes reacionários desse tipo tinham origens e inspirações mais antigas que o fascismo, e às vezes muito diferentes dele, nenhuma linha nítida os separava, porque ambos partilhavam os mesmos inimigos, senão as mesmas metas. Assim, a Igreja Católica Romana, profunda e inflexivelmente reacionária como era em sua versão oficial consagrada pelo primeiro Concilio Vaticano de 1870, não era fascista. Na verdade, por sua hostilidade a Estados essencialmente seculares com pretensões totalitárias, veio a sofrer a oposição do fascismo. Mas a doutrina do “Estado corporativo”, melhor exemplificada em países católicos, foi em grande parte elaborada em círculos fascistas (italianos), embora estes, é claro, tivessem recorrido à tradição católica para fazê-lo. Esses regimes chegaram a ser chamados de “clerical-fascistas” e fascistas em países católicos às vezes vinham diretamente do catolicismo integrista, como no movimento rexista do belga Leon Degrelle. A ambiguidade da atitude da Igreja em relação ao racismo de Hitler já foi muitas vezes comentada; com menos frequência observou-se a considerável ajuda dada após a guerra por pessoas de dentro da Igreja, às vezes em posições importantes, a fugitivos nazistas ou fascistas de vários tipos, inclusive muitos acusados de horripilantes crimes de guerra. O que ligava a Igreja não só a reacionários anacrônicos mas aos fascistas era um ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: democracia, liberalismo e, claro, mais marcadamente, o “comunismo ateu”. 

 De fato a era fascista assinalou uma virada na história católica, em grande parte porque a identificação da Igreja com a direita, cujos maiores porta-vozes internacionais eram agora Hitler e Mussolini, criou substanciais problemas morais para os católicos com preocupações sociais, para não falar de substanciais conflitos políticos com as hierarquias não antifascistas o bastante à medida que o fascismo recuava para sua derrota inevitável. Por outro lado, o antifascismo, ou a simples resistência patriótica ao conquistador estrangeiro, pela primeira vez dava legitimidade ao catolicismo democrático (democracia cristã) dentro da Igreja. Os partidos políticos que mobilizavam o voto católico romano haviam surgido, em bases pragmáticas, em países onde os católicos eram uma minoria significativa, normalmente para defender interesses da Igreja contra Estados seculares, como na Alemanha e nos Países Baixos. A Igreja resistia fazer tais concessões à política da democracia e do liberalismo em países oficialmente católicos, embora se preocupasse com a ascensão do socialismo ateu o bastante para formular em 1891 — uma renovação radical — uma política social que acentuava a necessidade de dar aos trabalhadores o que lhes era devido, mantendo ao mesmo tempo o caráter sagrado da família e da propriedade privada, mas não do capitalismo como tal. [2] Isso proporcionou uma primeira base para os católicos sociais e aqueles dispostos a organizar formas de defesa dos trabalhadores, como sindicatos católicos, de maneira geral mais inclinados a tais atividades por pertencerem ao lado mais liberal do catolicismo. Com exceção da Itália, onde o papa Benedito XV (1914-22) permitiu por um breve período que um grande Partido Popular (católico) surgisse após a Primeira Guerra Mundial, até o fascismo destruí-lo, os católicos democráticos e sociais continuaram sendo minorias políticas marginais. Foi o avanço do fascismo na década de 1930 que os tirou do casulo, embora os católicos que declararam seu apoio à República espanhola fossem um grupo pequeno, apesar de intelectualmente importante. O apoio dos católicos foi decididamente para Franco. A Resistência, que eles podiam justificar com base mais no patriotismo que na ideologia, lhes deu uma oportunidade, e a vitória lhes permitiu tomá-la. Mas o triunfo da democracia cristã na Europa, e algumas décadas depois em partes da América Latina, pertence a um período posterior. Quando o liberalismo caiu, a Igreja, com raras exceções, se rejubilou com sua queda. 

II

 Restam os movimentos que podem ser verdadeiramente chamados de fascistas. O primeiro desses foi o italiano, que deu nome ao fenômeno, criação de um renegado jornalista socialista, Benito Mussolini, cujo primeiro nome, tributo ao anticlerical presidente mexicano Benito Juárez, simbolizava o apaixonado antipapismo de sua nativa Romagna. O próprio Adolf Hitler reconheceu sua dívida e seu respeito a Mussolini, mesmo quando Mussolini e a Itália fascista demonstraram sua fraqueza e incompetência na Segunda Guerra Mundial. Em troca, Mussolini recebeu de Hitler, um tanto tardiamente, o antissemitismo que estivera de todo ausente do seu movimento antes de 1938, e na verdade da história da Itália desde a unificação. [3] Contudo, o fascismo italiano sozinho não exerceu muita atração internacional, embora tentasse influenciar e financiar pequenos movimentos em outras partes, e mostrasse alguma influência em setores inesperados, como sobre Vladimir Jabotinsky, fundador do “revisionismo” sionista, que se tornou o governo de Israel sob Menahem Begin na década de 1970. 

 Sem o triunfo de Hitler na Alemanha no início de 1933, o fascismo não teria se tornado um movimento geral. Na verdade, todos os movimentos fascistas com algum peso fora da Itália foram fundados após sua chegada ao poder, notadamente a Cruz em Seta húngara, que arrebanhou 25% dos votos na primeira eleição secreta realizada na Hungria (1939), e a Guarda de Ferro romena, cujo apoio real era ainda maior. De fato, mesmo movimentos inteiramente financiados por Mussolini, como o todos terroristas Ustashi croatas de Ante Pavelich, não ganharam muito terreno, e permaneceram ideologicamente fascistizados até a década de 1930, quando parte deles buscou inspiração e financiamento na Alemanha. Mais que isso, sem o triunfo de Hitler na Alemanha, a ideia do fascismo como um movimento universal, uma espécie de equivalente direitista do comunismo internacional tendo Berlim como sua Moscou, não teria se desenvolvido. O que não produziu um movimento sério, mas apenas, durante a Segunda Guerra Mundial, colaboradores ideologicamente motivados dos alemães na Europa ocupada. Foi nesse ponto que, notadamente na França, muitos da ultradireita tradicional, por mais reacionários que fossem, se recusaram a aderir: eram nacionalistas ou não seriam nada. Alguns chegaram a juntar-se à Resistência. Além disso, sem a posição internacional da Alemanha como uma potência mundial bem-sucedida e em ascensão, o fascismo não teria tido impacto sério fora da Europa, nem teriam os governantes reacionários não fascistas se dado o trabalho de posar de simpatizantes fascistas, como quando Salazar de Portugal alegou, em 1940, que ele e Hitler estavam “ligados pela mesma ideologia” (Delzell, 1970, p. 348). 

 Não é fácil discernir, depois de 1933, o que os vários tipos de fascismo tinham em comum, além de um senso geral de hegemonia alemã. A teoria não era o ponto forte de movimentos dedicados às inadequações da razão e do racionalismo e à superioridade do instinto e da vontade. Atraíram todo tipo de teóricos reacionários em países de vida intelectual conservadora ativa — a Alemanha é um caso óbvio —, mas estes eram elementos mais decorativos que estruturais do fascismo: Mussolini poderia facilmente ter dispensado seu filósofo de plantão, Giovanni Gentile, e Hitler na certa nem soube nem se importou com o apoio do filósofo Heidegger. Também o fascismo não pode ser identificado com uma determinada forma de organização do Estado, como o Estado corporativista — a Alemanha perdeu logo o interesse por tais ideias, tanto mais porque elas conflitavam com a ideia de uma única, indivisa e total Volksgemeinschaft, ou Comunidade Popular. Mesmo um elemento aparentemente tão fundamental como o racismo no início estava ausente do fascismo italiano. Por outro lado, como vimos, o fascismo compartilhava nacionalismo, anticomunismo, antiliberalismo, etc., com outros elementos não fascistas da direita. Vários desses, notadamente entre os grupos reacionários franceses não fascistas, também compartilhavam com ele a preferência pela violência de rua como política. 

 A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os defensores do “Estado orgânico” tentavam contornar. O fascismo rejubilava-se na mobilização das massas, e mantinha-a simbolicamente na forma de teatro público — os comícios de Nuremberg, as massas na piazza Venezia assistindo os gestos de Mussolini lá em cima na sacada — mesmo quando chegava ao poder; como também faziam os movimentos comunistas. Os fascistas eram os revolucionários da contrarrevolução: em sua retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas da sociedade, em sua convocação a uma total transformação da sociedade, e até mesmo em sua deliberada adaptação dos símbolos e nomes dos revolucionários sociais, tão óbvia no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores de Hitler, com sua bandeira vermelha (modificada) e sua imediata instituição do Primeiro de Maio dos comunistas como feriado oficial em 1933. 

 Do mesmo modo, embora o fascismo também se especializasse na retórica da volta ao passado tradicional, e recebesse muito apoio de classes de pessoas que teriam genuinamente preferido aniquilar o século anterior se pudessem, não era de modo algum um movimento tradicionalista como, digamos, os carlistas da Navarra, que formaram um dos principais corpos de apoio a Franco na Guerra Civil, ou as campanhas de Gandhi por um retorno aos teares manuais e ideais da aldeia. Enfatizava muitos valores tradicionais, o que é outro assunto. Os fascistas denunciavam a emancipação liberal — as mulheres deviam ficar em casa e ter muitos filhos — e desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes modernistas, que os nacional-socialistas alemães descreviam como “bolchevismo cultural” e degeneradas. Contudo, os movimentos fascistas — o italiano e o alemão — não apelavam aos guardiães históricos da ordem conservadora, a Igreja e o rei, mas ao contrário buscavam complementá-los com um princípio de liderança inteiramente não tradicional, corporificado no homem que se faz a si mesmo, legitimizado pelo apoio das massas, por ideologias seculares e às vezes cultas. 

 O passado ao qual eles apelavam era uma invenção. Suas tradições, fabricadas. Mesmo o racismo de Hitler não era feito daquele orgulho de uma linhagem ininterrupta e sem mistura que leva americanos esperançosos de provar sua descendência de algum nobre de Suffolk do século XVI a contratar genealogistas, mas uma mixórdia pós-darwiniana do século XIX pretendendo (e, infelizmente, na Alemanha muitas vezes recebendo) o apoio da nova ciência da genética, mais precisamente do ramo da genética aplicada (“eugenia”) que sonhava em criar uma super-raça humana pela reprodução seletiva e a eliminação dos incapazes. A raça destinada a dominar o mundo através de Hitler não tinha sequer um nome até 1898, quando um antropólogo cunhou o termo “nórdico”. Hostil como era, em princípio, à herança do Iluminismo e da Revolução Francesa do século XVIII, o fascismo não podia formalmente acreditar em modernidade e progresso, mas não se acanhava em combinar um lunático conjunto de crenças com uma modernidade tecnológica em questões práticas, exceto quando ela comprometia sua pesquisa científica básica feita em premissas ideológicas (ver capítulo 18). O fascismo era triunfantemente antiliberal. Também forneceu a prova de que o homem pode, sem dificuldade, combinar crenças malucas sobre o mundo com um confiante domínio de alta tecnologia contemporânea. O fim do século XX, com suas seitas fundamentalistas brandindo as armas da televisão e da coleta de fundos programada em computador, nos familiarizou mais com esse fenômeno. 

 Apesar disso, a combinação de valores conservadores, técnicas de democracia de massa e a inovadora ideologia de barbarismo irracionalista, centrada em essência no nacionalismo, precisa ser explicada. Tais movimentos não tradicionais da direita radical haviam surgido em vários países europeus em fins do século XIX, em reação ao liberalismo (isto é, à transformação acelerada de sociedades pelo capitalismo), à ascensão dos movimentos da classe trabalhadora, e, de maneira geral, à onda de estrangeiros que invadia o mundo na maior migração de massa da história até aquela data. Homens e mulheres migravam não apenas para o outro lado de oceanos e fronteiras internacionais, mas do campo para a cidade; de uma região do mesmo país para outra — em suma, de “casa” para a terra de estrangeiros e, virando-se a moeda, como estranhos em casa alheia. Quase quinze em cada cem poloneses saíram de seu país para não voltar, e mais meio milhão por ano como migrantes sazonais — em sua grande maioria para juntar-se às classes trabalhadoras dos países que os recebiam. Antecipando o fim do século XX, o fim do século XIX introduziu a xenofobia de massa, da qual o racismo — a proteção da cepa local pura contra a contaminação, e até mesmo a submersão, pelas hordas invasoras subumanas — tornou-se a expressão comum. Sua força pode ser medida não só pelo temor da imigração polonesa que levou o grande sociólogo alemão liberal Max Weber a apoiar temporariamente a Liga Pangermânica, mas pela campanha cada vez mais febril contra a imigração de massa nos EUA, que acabou levando, durante e após a Primeira Guerra Mundial, o país da Estátua da Liberdade a fechar suas fronteiras àqueles aos quais a Estátua fora erigida para acolher.

 O cimento comum desses movimentos era o ressentimento de homens comuns contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes movimentos de trabalhistas, do outro. Ou que, na melhor das hipóteses, os privava da posição respeitável que tinham ocupado na ordem social, e que julgavam lhes ser devida, ou do status social numa sociedade dinâmica a que achavam que tinham direito a aspirar. Esses sentimentos encontraram sua expressão característica no anti-semitismo, que começou a desenvolver movimentos políticos específicos baseados na hostilidade aos judeus no último quartel do século XIX em vários países. Os judeus estavam presentes em quase todo lugar e podiam simbolizar com facilidade tudo o que havia de mais odioso num mundo injusto, inclusive seu compromisso com as ideias do Iluminismo e da Revolução Francesa que os tinham emancipado e, ao fazê-lo, os haviam tornado mais visíveis. Eles podiam servir como símbolos do odiado capitalista/financista; do agitador revolucionário; da corrosiva influência dos “intelectuais sem raízes” e dos novos meios de comunicação; da competição — como poderia ela ser outra coisa que não “injusta”? — que lhes dava uma fatia desproporcional dos empregos em certas profissões que exigiam educação; e do estrangeiro e forasteiro como tal. Para não falar da visão aceita entre os cristãos antiquados de que eles tinham matado Jesus.

 A antipatia aos judeus era de fato difusa no mundo ocidental, e a posição deles na sociedade do século XIX ambígua. Contudo, o fato de operários em greve, mesmo quando membros de movimentos trabalhistas não racistas, atacarem lojistas judeus e pensarem em seus patrões como judeus (com bastante freqüência corretamente, em grandes áreas da Europa Central e Oriental), não deve levar-nos a vê-los como proto-nacional-socialistas, assim como o antissemitismo habitual dos intelectuais britânicos edwardianos, como os do Grupo de Bloomsbury, não os tornava simpatizantes de antissemitas políticos da direita radical. O antissemitismo camponês da Europa Oriental, onde para fins práticos o judeu era o ponto de contato entre o ganha-pão do aldeão e a economia externa de que sempre dependera, era sem dúvida mais permanente e explosivo, e tornou-se mais ainda quando as sociedades rurais eslavas, magiares e romenas foram convulsionadas pelos incompreensíveis terremotos do mundo moderno. Entre povos tão sombrios ainda se podia acreditar nas histórias de judeus sacrificando crianças cristãs, e os momentos de explosão social levavam a pogroms que os reacionários do império do czar estimulavam, sobretudo após o assassinato do czar Alexandre II em 1881 por revolucionários sociais. Aqui, uma estrada reta conduz do antissemitismo de base ao extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Certamente o antissemitismo de base deu substrato a movimentos fascistas europeus orientais que adquiriram uma base de massa — notadamente a Guarda de Ferro na Romênia e a Cruz em Seta na Hungria. De qualquer modo, nos antigos territórios dos Habsburgo e Romanov essa ligação foi muito mais clara que no Reich alemão, onde o antissemitismo de base rural e provincial, embora forte e com profundas raízes, era menos violento: pode-se mesmo dizer, mais tolerante. Judeus que fugiram da recém-ocupada Viena para Berlim em 1938 ficaram pasmados com a ausência de antissemitismo nas ruas. Ali a violência vinha por decreto de cima, como em novembro de 1938 (Kershaw, 1983). Mesmo assim, não há comparação entre a selvageria casual e intermitente dos pogroms e o que iria acontecer uma geração depois. O punhado de mortos de 1881, os quarenta ou cinquenta do pogrom de Kishinev de 1903, indignaram o mundo — e justificadamente — porque nos dias antes do avanço do barbarismo um tal número de vítimas parecia intolerável a um mundo que esperava que a civilização progredisse. Mesmo os muito maiores pogroms que acompanharam os levantes de camponeses em massa da Revolução de 1905, na Rússia tiveram, pelos padrões posteriores, apenas modestas baixas — talvez oitocentos mortos no todo. Pode-se comparar isso com os 3800 judeus assassinados em Vilnius (Vilna) pelos lituanos nos três dias de 1941, quando os alemães invadiram a URSS, antes que começassem os extermínios sistemáticos. 

 Os novos movimentos da direita radical que apelavam para essas tradições mais antigas de intolerância, mas em essência as transformavam, atraíam sobretudo os grupos inferiores e médios das sociedades europeias, e eram formulados como retórica e teoria por intelectuais nacionalistas que surgiram como uma tendência na década de 1890. O próprio termo “nacionalismo” foi cunhado nessa década para descrever esses porta-vozes da reação. A militância de classe média e de classe média baixa deu uma virada para a direita radical sobretudo em países onde as ideologias de democracia e liberalismo não eram dominantes, ou entre classes que não se identificavam com elas, ou seja, em países que não haviam passado por uma Revolução Francesa ou seu equivalente. Na verdade, nos principais países centrais do liberalismo ocidental — Grã-Bretanha, França e EUA — a hegemonia da tradição revolucionária impediu o surgimento de quaisquer movimentos fascistas de massa importantes. É um engano confundir o racismo dos populistas americanos ou o chauvinismo dos republicanos franceses com protofascismo: esses eram movimentos da esquerda. 

 Isso não queria dizer que, quando a hegemonia de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não mais atrapalhasse, os velhos instintos não pudessem ligar-se a novos slogans políticos. Há pouca dúvida de que os ativistas da suástica nos Alpes suíços foram em grande parte recrutados da espécie de profissionais liberais provincianos — veterinários, agrimensores e outros assim — que tinham sido os liberais locais, uma minoria educada e emancipada num ambiente dominado pelo clericalismo camponês. Do mesmo modo, no fim do século XX, a desintegração dos movimentos proletários trabalhistas e socialistas clássicos liberou o chauvinismo e racismo instintivos de muitos trabalhadores braçais. Até então, embora não exatamente imunes a tais sentimentos, eles hesitavam em manifestá-los em público, por lealdade a partidos apaixonadamente hostis a tal intolerância. Desde a década de 1960, a xenofobia e o racismo político ocidentais se encontram sobretudo entre as camadas de trabalhadores braçais. Contudo, nas décadas em que se incubou o fascismo, eles pertenciam aos que não sujavam as mãos no trabalho.

 As camadas de classe média e média baixa continuaram sendo o alicerce desses movimentos por toda a era da ascensão do fascismo. Não negam isso a sério nem mesmo historiadores ansiosos por revisar o consenso de “quase” todas as análises feitas sobre o apoio nazista feitas entre 1930 e 1980 (Childers, 1983; Childers, 1991, pp. 8, 14-5). Tomemos apenas um caso entre as muitas pesquisas da filiação e do apoio de tais movimentos na Áustria do entreguerras. Dos nacional-socialistas eleitos como conselheiros distritais em Viena em 1932, 18% eram autônomos, 56% trabalhadores de escritório e funcionários públicos, e 14% operários. Dos nazistas eleitos em cinco assembleias austríacas fora de Viena no mesmo ano, 16% eram seus próprios patrões e fazendeiros, 51% trabalhadores de escritório etc., e 10% operários (Larsen et al., 1978, pp. 766-7).

 Isso não quer dizer que os movimentos fascistas não conseguiam conquistar genuíno apoio de massa entre os trabalhadores pobres. Qualquer que fosse a composição dos seus quadros, os membros da Guarda de Ferro romena vinham do campesinato pobre. O eleitorado da Cruz em Seta húngara era, em grande parte, operário (o Partido Comunista sendo ilegal e o Social Democrata, sempre pequeno, pagando o preço por ser tolerado pelo regime de Horthy) e, após a derrota da social-democracia austríaca em 1934, houve uma visível virada dos operários para o Partido Nazista, sobretudo nas províncias austríacas. Além disso, assim que se estabeleceram governos fascistas com legitimidade pública, como na Itália e na Alemanha, muito mais trabalhadores ex-socialistas e comunistas se alinharam com os novos regimes do que agrada à tradição da esquerda considerar. Apesar disso, como os partidos fascistas tinham dificuldades para atrair os elementos autenticamente tradicionais da sociedade rural (a menos que apoiados, como na Croácia, por organizações como a Igreja Católica Romana), e eram inimigos jurados de ideologias e partidos identificados com as classes trabalhadoras organizadas, seu eleitorado principal se encontrava naturalmente nas camadas médias da sociedade.

 Até onde chegava o apelo original do fascismo dentro da classe média é uma questão mais em aberto. Certamente era forte o seu apelo para a juventude da classe média, sobretudo para universitários da Europa continental, os quais, entre as guerras, foram conhecidos por seu ultradireitismo. Treze por cento dos membros do movimento fascista italiano em 1921 (ou seja, antes da “Marcha sobre Roma”) eram estudantes. Na Alemanha, entre 5% e 10% de todos os estudantes eram membros do partido já em 1930, quando a grande maioria de futuros nazistas ainda não começara a interessar-se por Hitler (Kater, 1985, p. 467; Noelle & Neumann, 1967, p. 196). Como veremos, os ex-oficiais militares da classe média estavam fortemente representados: tipos para os quais a Grande Guerra, com todos os seus horrores, assinalara o pico da realização pessoal, comparado ao qual suas futuras vidas civis só se mostraram decepcionantes vales. Esses eram, claro, segmentos das camadas médias particularmente receptivos aos apelos do ativismo. Em termos gerais, o apelo da direita radical era tanto mais forte quanto maior fosse a ameaça à posição, real ou convencionalmente esperada, de um segmento profissional da classe média, à medida que cedia e ruía o esquema que devia manter a sua ordem social no lugar. Na Alemanha, o duplo golpe da grande inflação, que reduziu o valor da moeda a zero, e da posterior Grande Depressão radicalizou até mesmo camadas da classe média como as dos funcionários públicos médios e altos, cuja posição parecia segura, e que em circunstâncias menos traumáticas estariam satisfeitos em continuar como patriotas no velho estilo, nostálgicos do kaiser Guilherme, mas dispostos a cumprir seu dever com uma República encabeçada pelo marechal-de-campo Hindenburg, caso ela não estivesse visivelmente desmoronando sob seus pés. A maioria dos alemães apolíticos entre as guerras sentia saudades do império de Guilherme. Ainda na década de 1960, quando a maioria dos alemães ocidentais tinha concluído (compreensivelmente) que a melhor época na história alemã era agora, 42% dos de mais de sessenta anos ainda achavam que a época anterior a 1914 era melhor que a presente, contra 32% convertidos pelo Wirtschaftswunder [milagre econômico] (Noelle & Neumann, 1967, p. 196). Os eleitores do centro e da direita burgueses passaram em números maciços para o Partido Nazista entre 1930 e 1932. Mas não foram esses os construtores do fascismo. 

 Essas classes médias conservadoras eram, está claro, defensoras potenciais ou mesmo convertidas do fascismo, devido à maneira como se traçaram as linhas de combate político no entreguerras. A ameaça à sociedade liberal e todos os seus valores parecia vir exclusivamente da direita; a ameaça à ordem social, da esquerda. As pessoas da classe média escolhiam sua política de acordo com seus temores. Os conservadores tradicionais em geral simpatizavam com os demagogos do fascismo e dispunham-se a aliar-se a eles contra o inimigo maior. O fascismo italiano tinha uma cobertura de imprensa mais ou menos favorável na década de 1920, e mesmo na de 1930, exceto da que ia do liberalismo até a esquerda. “Tirando a experiência audaciosa do fascismo, a década não foi frutífera em lideranças estatais construtivas”, escreveu John Buchan, o eminente conservador e escritor britânico de romances de suspense. (O gosto pela criação de suspenses raramente acompanha convicções esquerdistas, o que é uma pena.) (Graves & Hodge, 1941, p. 248) Hitler foi levado ao poder por uma coalizão da direita tradicional, que ele depois suplantou. O general Franco incluiu a então não muito importante Falange espanhola em sua frente nacional porque o que ele representava era a união de toda a direita contra os espectros de 1789 e 1917, entre os quais ele não fazia distinções sutis. Foi por mera sorte que não entrou na Segunda Guerra Mundial do lado de Hitler, mas enviou uma força de voluntários, a “Divisão Azul”, para combater os comunistas ateus na Rússia lado a lado com os alemães. O marechal Pétain certamente não era fascista nem simpatizante nazista. Um dos motivos pelos quais foi tão difícil após a guerra distinguir entre fascistas franceses convictos e colaboradores pró-alemães, de um lado, e o corpo principal de apoio ao regime de Vichy do marechal Pétain, de outro, era que na verdade não havia uma linha nítida que os separasse. Aqueles cujos pais tinham odiado Dreyfus, os judeus e a cadela-República — algumas figuras de Vichy tinham idade suficiente para tê-lo feito pessoalmente — transformaram-se sem sentir em fanáticos defensores de uma Europa hitlerista. Em suma, a “natureza” da aliança da direita entre as guerras ia dos conservadores tradicionais, passando pelos reacionários da velha escola, até os extremos da patologia fascista. As hostes tradicionais do conservadorismo e da contrarrevolução eram fortes, mas muitas vezes inertes. O fascismo forneceu-lhes a dinâmica e, talvez mais importante ainda, o exemplo de vitória sobre as forças da desordem. (O argumento proverbial em favor da Itália fascista não era que “Mussolini fez os trens rodarem no horário”?) Do mesmo modo como o dinamismo dos comunistas exerceu uma atração sobre a esquerda desorientada e sem leme após 1933, também os sucessos do fascismo, sobretudo depois da tomada nacional-socialista da Alemanha, deram a impressão de que ele era a onda do futuro. O próprio fato de que nessa época o fascismo fez uma entrada destacada, se bem que breve, no cenário político até mesmo da conservadora Grã-Bretanha demonstra o poder desse “efeito demonstrativo”. A conversão de um dos mais destacados políticos do país e a conquista do apoio de um de seus grandes chefões da imprensa são mais significativas do que o fato de o movimento de sir Oswald Mosley ter sido rapidamente abandonado por políticos respeitáveis e o Daily Mail de lorde Rothermere ter logo retirado seu apoio à União de Fascistas britânica. Pois a Grã-Bretanha ainda era vista, universal e corretamente, como um modelo de estabilidade política e social. 

III

 A ascensão da direita radical após a Primeira Guerra Mundial foi sem dúvida uma resposta ao perigo, na verdade à realidade, da revolução social e do poder operário em geral, e à Revolução de Outubro e ao leninismo em particular. Sem esses, não teria havido fascismo algum, pois embora os demagógicos ultradireitistas tivessem sido politicamente barulhentos e agressivos em vários países europeus desde o fim do século XIX, quase sempre haviam sido mantidos sob controle antes de 1914. Sob esse aspecto, os apologetas do fascismo provavelmente têm razão quando afirmam que Lenin engendrou Mussolini e Hitler. Contudo, é inteiramente ilegítimo desculpar o barbarismo fascista alegando que ele foi inspirado pelas supostas barbaridades anteriores da Revolução Russa — que teria imitado —, como alguns historiadores alemães estiveram perto de fazer na década de 1980 (Nolte, 1987). 

 Contudo duas restrições devem ser feitas à tese de que a reação direitista foi essencialmente uma resposta à esquerda revolucionária. Primeiro subestima o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre uma importante camada de soldados e jovens nacionalistas, em grande parte da classe média e média baixa, os quais, depois de novembro de 1918, ressentiram-se de sua oportunidade perdida de heroísmo. O chamado “soldado da linha de frente” (frontsoldat) iria desempenhar um papel importantíssimo na mitologia dos movimentos da direita radical — o próprio Hitler era um deles — e proporcionar um corpo substancial dos primeiros esquadrões de ultranacionalistas violentos, como os oficiais que mataram os líderes comunistas Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo no início de 1919, os squadristi italianos e freikorps alemães. Cinquenta e sete por cento dos primeiros fascistas italianos eram ex-soldados. Como vimos, a Primeira Guerra Mundial, foi uma máquina que brutalizou o mundo, e esses homens se regozijaram com a liberação de sua brutalidade latente.

 O forte compromisso da esquerda, começando com os liberais progressistas, com movimentos antiguerra e antimilitaristas, e a imensa repulsa popular contra a matança em massa da Primeira Guerra Mundial levaram muitos a subestimar o surgimento de uma minoria relativamente pequena, mas ainda assim numerosa, para a qual a experiência do combate, mesmo nas condições de 1914-8, era fundamental e inspiradora; para a qual o uniforme e a disciplina, o sacrifício — o próprio ou o dos outros — e o sangue, as armas e o poder eram o que fazia a vida masculina digna de viver. Eles não escreveram muitos livros sobre a guerra, embora (sobretudo na Alemanha) um ou dois o tenham feito. Esses Rambos da época eram recrutas naturais da direita radical. 

 A segunda restrição é que a reação da direita respondeu não ao bolchevismo como tal mas a todos os movimentos que ameaçavam a ordem existente da sociedade ou podiam ser culpados pelo seu colapso, especialmente a classe operária organizada. Lenin era mais o símbolo dessa ameaça do que a realidade concreta, que, para a maioria dos políticos, era representada não tanto pelos partidos trabalhistas socialistas, de líderes bastante moderados, mas pelo surto de poder, confiança e radicalismo dos operários, que davam aos velhos partidos socialistas uma nova força política e, de fato, transformaram-nos em esteios indispensáveis dos Estados liberais. Não por acaso, no imediato pós-guerra, a exigência principal dos agitadores socialistas desde 1889 foi concedida quase em toda parte na Europa: o dia de trabalho de oito horas.

 A ameaça implícita na ascensão da força dos trabalhadores fazia gelar o sangue dos conservadores, mais que a transformação de líderes sindicais e oradores da oposição em ministros do governo, embora isso já fosse difícil de engolir. Eles pertenciam por definição à “esquerda”. Numa era de revolta social, nenhuma linha clara os separava dos bolcheviques. Na verdade, muitos dos partidos socialistas teriam se juntado alegremente aos comunistas nos anos do imediato pós-guerra, não houvessem estes rejeitado a filiação. O homem que Mussolini assassinou após sua “Marcha sobre Roma” não era um líder do Partido Comunista, mas um socialista, Matteotti. A direita tradicional talvez visse a Rússia ateia como a encarnação de tudo que era mal no mundo, mas o levante dos generais em 1936 não foi dirigido contra os comunistas como tais, mesmo porque eles eram a menor parte da Frente Popular (ver capítulo 5). Foi dirigido contra uma onda popular que, até a Guerra Civil, tinha favorecido os socialistas e anarquistas. Uma racionalização ex post facto é que faz de Lenin e Stalin uma desculpa para o fascismo. 

 Ainda assim é preciso explicar por que a reação da direita após a Primeira Grande Guerra conseguiu vitórias cruciais na forma do fascismo. Antes de 1914 já existiam movimentos extremistas da ultradireita — histericamente nacionalistas e xenofóbicos, promotores dos ideais da guerra e da violência, intolerantes e dados a atos violentamente coercivos, totalmente antiliberais, antidemocráticos, antiproletários, antissocialistas e antinacionalistas, defensores do sangue e do solo e dos valores antigos que a modernidade estava destruindo. Eles tinham alguma influência dentro da direita política e em alguns círculos intelectuais, mas em lugar algum chegam a dominar ou controlar. 

 O que deu ao fascismo sua oportunidade após a Primeira Guerra Mundial foi o colapso dos velhos regimes, e com eles das velhas classes dominantes e seu maquinário de poder, influência e hegemonia. Onde estas permaneceram em boa ordem de funcionamento, não houve necessidade de fascismo. Ele não fez progresso algum na Grã-Bretanha, apesar da breve agitação nervosa acima indicada. A direita conservadora tradicional continuou no controle. Não fez progresso efetivo na França até depois da derrota de 1940. Embora a direita radical francesa — a monarquista Action Française e a Croix de Feu [Cruz de Fogo] do coronel La Rocque — estivesse bastante disposta a espancar esquerdistas, não chegava a ser fascista, e de fato alguns de seus elementos iriam juntar-se à Resistência.

 Do mesmo modo o fascismo não era necessário onde uma nova classe ou grupo nacionalista podia assumir o poder em países recém-independentes. Esses homens podiam ser reacionários e optar por um governo autoritário, por motivos a serem considerados adiante, mas só a retórica identificava cada virada antidemocrática para a direita na Europa entre as guerras com o fascismo. Não houve movimentos fascistas importantes na nova Polônia, governada por militaristas autoritários, tampouco na parte tcheca da Tchecoslováquia, que era democrática, nem no núcleo sérvio (dominante) da nova Iugoslávia. Nos países cujos governantes eram direitistas ou reacionários da velha escola e movimentos fascistas ou semelhantes surgiram — na Hungria, Romênia, Finlândia, mesmo na Espanha de Franco, cujo líder não era ele próprio um fascista — não houve dificuldade para mantê-los sob controle, a menos (como na Hungria em 1944) que os alemães os pressionassem. Isso não quer dizer que movimentos nacionalistas minoritários nos velhos ou novos Estados não pudessem achar o fascismo atraente, inclusive porque podiam esperar apoio financeiro e político da Itália e, depois de 1933, da Alemanha. Assim foi, claramente, em Flandres (na Bélgica), na Eslováquia e na Croácia. 

 As condições ideais para o triunfo da ultradireita alucinada eram um Estado velho, com seus mecanismos dirigentes não mais funcionando; uma massa de cidadãos desencantados, desorientados e descontentes, não mais sabendo a quem ser leais; fortes movimentos socialistas ameaçando ou parecendo ameaçar com a revolução social, mas não de fato em posição de realizá-la; e uma inclinação do ressentimento nacionalista contra os tratados de paz de 1918-20. Essas eram as condições sob as quais as velhas elites governantes desamparadas sentiam-se tentadas a recorrer aos ultrarradicais, como fizeram os liberais italianos aos fascistas de Mussolini em 1920-2, e os alemães aos nacional-socialistas de Hitler em 1932-3. Essas, pelo mesmo princípio, foram as condições que transformaram movimentos da direita radical em poderosas forças organizadas e às vezes uniformizadas e paramilitares (squadristi; as tropas de assalto), ou, como na Alemanha durante a Grande Depressão, em maciços exércitos eleitorais. Contudo, em nenhum dos dois Estados fascistas o fascismo “conquistou o poder”, embora na Itália e na Alemanha se explorasse muito a retórica de se “tomar as ruas” e “marchar sobre Roma”. Nos dois casos o fascismo chegou ao poder pela conivência com, e na verdade (como Itália) por iniciativa do velho regime, ou seja de uma forma “constitucional”.

 A novidade do fascismo era que, uma vez no poder, ele se recusava a jogar segundo as regras do velhos jogos políticos, e tomava posse completamente onde podia. A transferência total de poder, ou a eliminação de todos os rivais, demorou bastante mais na Itália que na Alemanha (1933-4), mas, uma vez realizada, não havia mais limites políticos internos para o que se tornava, caracteristicamente, a desenfreada ditadura de um supremo “líder” populista (Duce; Führer). 

 Neste ponto, devemos descartar, por alguns instantes, duas teses igualmente inadequadas sobre o fascismo: uma fascista, mas adotada por muitos historiadores liberais, e outra cara ao marxismo soviético ortodoxo. Não houve “revolução fascista”, nem foi o fascismo a expressão do “capitalismo monopolista” ou do grande capital.

 Os movimentos fascistas apresentavam elementos dos movimentos revolucionários, na medida em que continham pessoas que queriam uma transformação fundamental da sociedade, frequentemente com um lado notadamente anticapitalista e antioligárquico. Contudo, o cavalo do fascismo revolucionário não deu a largada nem correu. Hitler eliminou rapidamente os que levavam a sério o componente “socialista” no nome do Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemães — o que ele sem dúvida não levava. A utopia de um retorno a uma Idade Média para o homem comum, cheia de proprietários camponeses hereditários, artesãos como Hans Sachs e moças de tranças louras, não era um programa que pudesse realizar-se em grandes Estados do século XX (a não ser na versão de pesadelo dos planos de Himmler para um povo racialmente purificado), menos ainda em regimes que, como o fascismo italiano e alemão, estavam empenhados no caminho da modernização e do avanço tecnológico. 

 O que o nacional-socialismo sem dúvida realizou foi um expurgo radical das velhas elites e estruturas institucionais imperiais. Afinal, o único grupo que realmente lançou uma revolta contra Hitler — e foi consequentemente dizimado — foi o velho exército prussiano aristocrático, em julho de 1944. Essa destruição das velhas elites e dos velhos esquemas, reforçada após a guerra pelas políticas dos exércitos ocidentais de ocupação, acabaria tornando possível construir a República Federal numa base muito mais sólida do que a República de Weimar de 1919-33, que tinha sido pouco mais que o império derrotado, sem o kaiser. O nazismo sem dúvida tinha, e em parte realizou, um programa social para as massas: férias; esportes; o planejado “carro do povo”, que o mundo veio a conhecer após a Segunda Guerra Mundial como o “fusca” Volkswagen. Sua principal realização, porém, foi acabar com a Grande Depressão mais efetivamente do que qualquer outro governo, pois o antiliberalismo dos nazistas tinha o lado positivo de não comprometê-los com uma crença a priori no livre mercado. Apesar disso, o nazismo era mais um velho regime recauchutado e revitalizado do que um regime basicamente novo e diferente. Como o Japão militarista e imperial da década de 1930 (que ninguém diria ser um sistema revolucionário), era uma economia capitalista não liberal que conseguiu uma impressionante dinamização de seu sistema industrial. As realizações econômicas e outras da Itália fascista foram bem menos impressionantes, como se demonstrou na Segunda Guerra Mundial. Sua economia de guerra era extraordinariamente fraca. A conversa sobre a “revolução fascista” não passava de retórica, embora, sem dúvida, para o grosso dos fascistas italianos, fosse uma retórica sincera. O fascismo foi mais claramente um regime calcado nos interesses das velhas classes dominantes, que surgira mais como uma defesa contra a agitação revolucionária do pós-guerra do que, como na Alemanha, como uma reação aos traumas da Grande Depressão e à incapacidade dos governos de Weimar de enfrentá-los. O fascismo italiano, que num certo sentido continuou o processo de unificação italiana do século XIX, com isso produzindo um governo mais forte e mais centralizado, teve algumas realizações a seu crédito. Foi, por exemplo, o único regime italiano a conseguir suprimir a Máfia siciliana e a Camorra napolitana. Contudo, seu significado histórico não repousa em seus objetivos e realizações, mas em seu papel como pioneiro global de uma nova versão da contrarrevolução triunfante. Mussolini inspirou Hitler, e Hitler jamais deixou de reconhecer a inspiração e a de italiana. Por outro lado, o fascismo italiano foi, e por um longo tempo continuou sendo, uma anomalia entre os movimentos da direita radical em sua tolerância e mesmo certo gosto pelo “modernismo” de vanguarda e também em alguns outros aspectos — notadamente na completa falta de interesse pelo racismo antissemita, até Mussolini se alinhar com a Alemanha em 1938.

 Quanto à tese do “capitalismo monopolista”, o ponto essencial do capital realmente grande é que pode se acomodar com todo regime que não o exproprie de fato, e qualquer regime tem de se acomodar com ele. O fascismo não foi mais “a expressão dos interesses do capital monopolista” do que o New Deal americano ou os governos trabalhistas britânicos, ou a República de Weimar. O grande capital no início da década de 1930 não queria particularmente Hitler, e teria preferido um conservadorismo mais ortodoxo. Deu-lhe pouco apoio até a Grande Depressão, e mesmo então o apoio foi tardio e pouco uniforme. Contudo, quando ele chegou ao poder, o capital colaborou seriamente, a ponto de usar trabalho escravo e campos de extermínio para suas operações durante a Segunda Guerra Mundial. O grande e o pequeno capital evidentemente se beneficiaram da expropriação dos judeus. 

 Deve-se dizer no entanto que fascismo teve algumas grandes vantagens para o capital, em relação a outros regimes. Primeiro eliminou ou derrotou a revolução social esquerdista, e na verdade pareceu ser o principal baluarte contra ela. Segunda eliminou os sindicatos e outras limitações aos direitos dos empresários de administrar sua força de trabalho. Na verdade, o “princípio de liderança” fascista era o que a maioria dos patrões e executivos de empresas aplicava a seus subordinados em suas firmas, e o fascismo lhe dava justificação autorizada. Terceiro destruição dos movimentos trabalhistas ajudou a assegurar uma solução extremamente favorável da Depressão para o capital. Enquanto nos EUA os 5% de unidades consumidoras do topo viram entre 1929 e 1941 sua fatia de renda total (nacional) cair 20% (houve uma tendência igualitária semelhante, porém mais modesta, na Grã-Bretanha e na Escandinávia), na Alemanha os 5% do topo ganharam 15% durante o mesmo período (Kuznets, 1956). Finalmente, como já se disse, o fascismo foi eficiente na dinamização e modernização de economias industriais — embora de fato menos no planejamento técnico-científico ousado e a longo prazo das democracias ocidentais.

 IV

 Teria o fascismo se tornado muito significativo na história do mundo não fosse a Grande Depressão? É provável que não. A Itália sozinha não era uma base promissora a partir da qual abalar o mundo. Na década de 20, nenhum outro movimento europeu de contrarrevolução da direita radical dava a impressão de ter muito futuro, em grande parte pelos mesmos motivos que levaram ao fracasso as tentativas insurrecionais de revolução social comunista: a onda revolucionária pós-1917 refluíra, e a economia parecia recuperar-se. Na Alemanha, os pilares da sociedade imperial, generais, funcionários públicos e o resto, tinham de fato dado um certo apoio aos paramilitares mercenários e outros extremistas da direita após a revolução de novembro, embora (compreensivelmente) tivessem se empenhando em manter a nova república conservadora, antirrevolucionária e, acima de tudo, um Estado capaz de ter algum espaço de manobra internacional. Contudo, quando forçados a optar, como durante o putsch direitista de Kapp de 1920 e a revolta de Munique de 1923, na qual Adolf Hitler se viu pela primeira vez nas manchetes, apoiaram sem hesitar o status quo. Após a recuperação econômica de 1924, o Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas foi reduzido a uma rabeira de 2,5 a 3% do eleitorado, conseguindo pouco mais da metade do que o pequeno e civilizado Partido Democrático alemão, pouco mais que um quinto dos comunistas e muito menos de um décimo dos social-democratas nas eleições de 1928. Contudo, dois anos depois havia subido para mais de 18% do eleitorado, tornando-se o segundo partido mais forte na política alemã. Quatro anos depois, no verão de 1932, era de longe o mais forte, com mais de 37% dos votos totais, embora não mantivesse esse apoio enquanto duraram as eleições democráticas. Está claro que foi a Grande Depressão que transformou Hitler de um fenômeno da periferia política no senhor potencial, e finalmente real, do país. 

 Contudo, mesmo a Grande Depressão não teria dado ao fascismo nem a força nem a influência que ele exerceu na década de 1930 caso não houvesse levado um movimento desse tipo ao poder na Alemanha, um Estado destinado por seu tamanho, potencial econômico e militar e também sua posição geográfica, a desempenhar um papel político importante na Europa sob qualquer forma de governo. Mesmo a derrota absoluta em duas guerras mundiais não impediu a Alemanha de acabar o século XX como o Estado dominante do continente. Do mesmo modo como, na esquerda, a vitória de Marx no maior Estado do globo (“um sexto da superfície terrestre do mundo”, como os comunistas gostavam de gabar-se entre as guerras) dera ao comunismo uma grande presença internacional, mesmo em momentos em que sua força política fora da URSS era insignificante, também a tomada da Alemanha por Hitler pareceu confirmar o sucesso da Itália de Mussolini e transformar o fascismo numa poderosa corrente política global. A bem-sucedida política de agressivo expansionismo militarista dos dois Estados (ver capítulo 5) — reforçada pela do Japão — dominou a política internacional da década. Era portanto natural que Estados ou movimentos do tipo apropriado fossem atraídos e influenciados pelo fascismo, buscassem o apoio da Alemanha e da Itália e — em vista da expansão desses países — muitas vezes o recebessem. 

 Na Europa, por motivos óbvios, esses movimentos pertenciam marcadamente à direita política. Assim, dentro do sionismo (que nessa época era um movimento quase só de judeus asquenazitas vivendo na Europa), a ala do movimento que se voltava para o fascismo italiano, os “revisionistas” de Vladimir Jabotinsky, era vista e se classificava como da direita, em oposição aos sionistas (predominantemente) socialistas e liberais. Contudo, a influência do fascismo na década de 1930 não podia deixar de ser, em certa medida, global, mesmo porque ele estava associado a duas potências dinâmicas e ativas. Mas, fora da Europa, foram poucas as condições para a criação dos movimentos fascistas como no continente de origem. Portanto, onde surgiram movimentos fascistas ou claramente influenciados pelo fascismo, sua localização e função políticas eram muito mais problemáticas.

 Evidentemente, certas características do fascismo europeu encontraram ecos no além-mar. Teria sido surpreendente se os muftis de Jerusalém e outros árabes que resistiam à colonização judaica da Palestina (e aos britânicos que a protegiam) não achassem a seu gosto o antissemitismo de Hitler, embora este não tivesse relação com os modos tradicionais de coexistência islâmica com infiéis de vários tipos. Alguns hindus de alta casta na Índia tinham consciência, como os modernos extremistas cingaleses do Sri Lanka, de sua superioridade como “arianos” confirmados — na verdade, como os originais — em relação a raças mais escuras em seu próprio subcontinente. E os bôeres militantes retidos como pró-alemães durante a Segunda Guerra Mundial — alguns tornaram-se líderes de seu país na era do apartheid após 1948 — também tinham afinidades ideológicas com Hitler, tanto como racistas convictos quanto pela influência teológica das correntes calvinistas elitistas de ultradireita dos Países Baixos. Contudo, isso dificilmente qualifica a proposição básica de que o fascismo, ao contrário do comunismo, não existia na Ásia ou África (a não ser talvez entre alguns colonos europeus locais) porque parecia não ter relação com as situações políticas locais.

 Isso se aplica, em termos gerais, até mesmo ao Japão, embora esse país fosse aliado da Alemanha e da Itália, combatesse do mesmo lado na Segunda Guerra Mundial e sua política fosse dominada pela direita. As afinidades entre as ideologias dominantes nas extremidades oriental e ocidental do Eixo são deveras fortes. Os japoneses não perdiam para ninguém em sua convicção de superioridade racial e da necessidade de pureza racial, em sua crença nas virtudes militares de autos sacrifício, obediência absoluta a ordens, abnegação e estoicismo. Todo samurai teria endossado o lema das SS de Hitler (Meine Ehre ist Treue, mais bem traduzido como “Honra significa subordinação cega”). Sua sociedade era de rígida hierarquia, total dedicação do indivíduo (se é que tal termo tinha algum significado local no sentido ocidental) à nação e seu divino imperador, e absoluta rejeição de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Os japoneses não tinham dificuldade para entender os mitos wagnerianos de deuses bárbaros, cavaleiros medievais puros e hericos e a natureza especificamente alemã das montanhas e florestas, ambas cheias de sonhos voelkisch alemães. Eles tinham a mesma capacidade de combinar comportamento bárbaro com sofisticada sensibilidade estética: o prazer do torturador do campo de concentração em tocar quartetos de Schubert. Na medida em que o fascismo podia ser traduzido em termos zen, os japoneses bem poderiam tê-lo acolhido, embora não precisassem dele. E na verdade, entre diplomatas acreditados junto às potências fascistas europeias, mas sobretudo entre os grupos terroristas ultranacionalistas dados a assassinar políticos não suficientemente patrióticos, e no exército do Kwantung que estava conquistando, dominando e escravizando a Manchúria e a China, havia japoneses que reconheciam essas afinidades e faziam campanha por uma identificação mais estreita com as potências fascistas europeias. 

 Contudo, o fascismo europeu não podia ser reduzido a um feudalismo oriental com uma missão imperial nacional. Pertencia essencialmente à era da democracia e do homem comum, embora o próprio conceito de um “movimento” de mobilização de massa para fins novos, na verdade revolucionários, guiado por líderes autodesignados não fizesse sentido no Japão de Hirohito. O exército e a tradição prussianos, mais do que Hitler, se encaixavam na sua visão de mundo japonesa. Em suma, apesar das semelhanças com o nacional-socialismo alemão (as afinidades com a Itália eram menores), o Japão não era fascista. 

 Quanto aos Estados e movimentos que buscavam o apoio da Alemanha e Itália, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Eixo dava grande impressão de que ia vencer, a ideologia não era o seu principal motivo, embora alguns dos regimes nacionalistas menores na Europa, cuja posição dependia inteiramente do apoio alemão, prontamente se anunciassem como mais nazistas que as SS, notadamente o Ustashi croata. Contudo, seria absurdo pensar no Exército Republicano Irlandês ou nos nacionalistas indianos sediados em Berlim como “fascistas” porque, na Segunda Guerra Mundial como na Primeira, alguns deles negociaram o apoio alemão com base no princípio de que “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”. Na verdade, o líder republicano irlandês Frank Ryan, que entrou nessas negociações, era ideologicamente tão antifascista que chegara a fazer parte das Brigadas Internacionais para combater o general Franco na Guerra Civil Espanhola, até ser capturado pelas forças de Franco e enviado para a Alemanha. Não precisamos deter-nos em tais casos. 

 Entretanto, resta ainda um continente em que o impacto ideológico do fascismo europeu foi inegável: as Américas. 

 Na América do Norte, homens e movimentos inspirados pela Europa não tiveram grande importância fora de determinadas comunidades de imigrantes cujos membros traziam consigo as ideologias do país de origem, como os escandinavos e judeus haviam trazido uma tendência para o socialismo, ou que retinham alguma lealdade para com seu antigo país. Dessa maneira, as afeições dos americanos provenientes da Alemanha — e, em muito menor medida, da Itália — contribuíram para o isolacionismo dos EUA, embora não haja indícios de que se tenham tornado fascistas em grande número. A parafernália de milícias, camisas de alguma cor e braço erguido em saudações a líderes não fez parte da direita e das mobilizações racistas americanas, das quais a Ku Klux Klan foi a mais conhecida. O antissemitismo era sem dúvida forte, embora sua versão contemporânea americana — como nos populares sermões do padre Coughlin pela rádio Detroit — provavelmente se devesse mais ao corporativismo direitista de inspiração católica europeia. É típico dos EUA na década de 1930 o fato de que o populismo demagógico mais bem-sucedido e possivelmente perigoso da década, a conquista da Louisiana por Huey Long, viesse do que era, em termos americanos, uma tradição claramente radical e esquerdista. Abateu a democracia em nome da democracia, e apelava não aos ressentimentos de uma pequeno-burguesia ou aos instintos antirrevolucionários de autopreservação dos ricos, mas ao igualitarismo dos pobres. Também não era racista. Nenhum movimento cujo slogan era “Todo homem um rei” podia encaixar-se na tradição nazista.

 Na América Latina é que a influência fascista europeia foi aberta e reconhecida, tanto em políticos individuais, como Jorge Eliezer Gaitán da Colômbia (1898-1948) e Juan Domingo Perón da Argentina (1895-1974), quanto em regimes, como o Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, no Brasil. Na verdade, apesar de infundados temores americanos de um cerco nazista a partir do Sul, o principal efeito da influência fascista na América Latina foi interno a seus países. Tirando a Argentina, que favoreceu abertamente o Eixo — mas o fez tanto antes de Perón tomar o poder em 1934 quanto depois —, os governos do hemisfério ocidental entraram na guerra do lado dos EUA, pelo menos nominalmente. É no entanto verdade que em alguns países sul-americanos seus militares foram moldados no sistema alemão ou treinados pelos alemães ou mesmo por quadros nazistas.

 Explica-se facilmente a influência fascista ao Sul do rio Grande. Vistos do sul, os Estados Unidos após 1914 não mais pareciam, como no século XIX, o aliado das forças internas do progresso e o contrapeso diplomático para os espanhóis, franceses e britânicos imperiais e ex imperiais. As conquistas imperiais americanas do território espanhol em 1898, a Revolução Mexicana, para não falar do surgimento das indústrias de petróleo e banana, introduziram um anti-imperialismo ianque na política latino-americana, que o gosto de Washington, no primeiro terço do século, por uma diplomacia de canhoneiras e desembarque de marines nada fez para desestimular. Victor Raul Haya de La Torre, fundador da anti-imperialista APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), de ambições pan-latinoamericanas, embora só se houvesse estabelecido em seu nativo Peru, planejava ter seus insurretos treinados pelos quadros do famoso rebelde anti-ianque Sandino na Nicarágua. (A longa guerra de guerrilha de Sandino contra a ocupação americana após 1927 iria inspirar a Revolução “sandinista” na Nicarágua na década de 1980.) Além disso, os EUA da década de 1930, debilitados pela Grande Depressão, não pareciam tão temíveis e dominadores quanto antes. O abandono, por Franklin D. Roosevelt, das canhoneiras e fuzileiros de seus antecessores podia ser visto não apenas como “política de boa vizinhança”, mas também (erroneamente) como um sinal de fraqueza. A América Latina da década de 1930 não se inclinava a olhar para o Norte.

 Mas, visto do outro lado do Atlântico, o fascismo sem dúvida parecia a história de sucesso da década. Se havia um modelo no mundo a ser imitado por políticos promissores de um continente que sempre recebera inspiração das regiões culturalmente hegemônicas, esses líderes potenciais de países sempre à espreita da receita para tornar-se modernos, ricos e grandes, esse modelo certamente podia ser encontrado em Berlim e Roma, uma vez que Londres e Paris não mais ofereciam muita inspiração política, e Washington estava fora de ação. (Moscou ainda era vista essencialmente como um modelo para a revolução social, o que restringia seu apelo político.)

 E, no entanto, como eram diferentes de seus modelos europeus as atividades e realizações políticas de homens que não faziam segredo de sua dívida intelectual para com Mussolini e Hitler! Ainda lembro o choque que senti ao ouvir o presidente da Bolívia revolucionária admiti-la sem hesitação numa conversa em particular. Na Bolívia, soldados e políticos de olho na Alemanha se viram organizando a revolução de 1952, que nacionalizou as minas de estanho e deu ao campesinato índio uma radical reforma agrária. Na Colômbia, o grande tribuno popular Jorge Eliezer Gaitán, longe de escolher a direita política, tomou a liderança do Partido Liberal e certamente, como presidente, o teria levado numa direção radical se não tivesse sido assassinado em Bogotá em 9 de abril de 1948, um fato que provocou a insurreição popular imediata da capital (inclusive a polícia) e a proclamação de comunas revolucionárias em muitas municipalidades provinciais do país. O que os líderes latino-americanos tomaram do fascismo europeu foi a sua deificação de líderes populistas com fama de agir. Mas as massas que eles queriam mobilizar, e se viram mobilizando, não eram as que temiam pelo que poderiam perder, mas sim as que nada tinham a perder. E os inimigos contra os quais eles as mobilizavam não eram estrangeiros e grupos de fora (embora seja inegável o conteúdo antissemita no peronismo e outras políticas argentinas), mas a “oligarquia” — os ricos, a classe dominante local. Perón encontrou o núcleo de seu apoio na classe trabalhadora argentina, e sua máquina política era algo parecido a um partido trabalhista construído em torno do movimento sindical de massa que promoveu. Getúlio Vargas no Brasil fez a mesma descoberta. Foi o exército que o derrubou em 1945 e, mais uma vez em 1954, forçando-o a suicidar-se. Foi a classe trabalhadora urbana, à qual ele dera proteção social em troca de apoio político, que o chorou como o pai de seu povo. Os regimes fascistas europeus destruíram os movimentos trabalhistas, os líderes latino-americanos que eles inspiraram os criaram. Independentemente de filiação intelectual, historicamente não podemos falar do mesmo tipo de movimento. 


 Contudo, também esses movimentos devem ser vistos como parte do declínio e queda do liberalismo na Era da Catástrofe. Pois embora a ascensão e triunfo do fascismo fossem a expressão mais espetacular da derrota liberal, é um erro, mesmo na década de 1930, ver essa queda exclusivamente em termos de fascismo. Portanto, na conclusão deste capítulo, devemos perguntar como se deve explicá-la. É preciso, no entanto, primeiro resolver a confusão comum que identifica fascismo com nacionalismo. 

 Que os movimentos fascistas tendiam a apelar para paixões e preconceitos nacionalistas é óbvio, embora os Estados corporativistas semifascistas, como Portugal e a Áustria em 1934- 8, em grande parte sob inspiração católica, tivessem de reservar seu ódio irrestrito para pessoas e países de outra religião ou ateus. Além disso, o nacionalismo puro era difícil para os movimentos fascistas de países conquistados e ocupados pela Alemanha e Itália, ou cujas fortunas dependiam da vitória desses Estados contra seus próprios governos nacionais. Nos casos desse tipo (Flandres, os Países Baixos, Escandinávia), eles podiam identificar-se com os alemães como parte do grupo racial teutônico maior, porém uma posição mais conveniente (apoiada com rigor pela propaganda do Dr. Goebbels durante a guerra) era paradoxalmente internacionalista. A Alemanha era vista como o núcleo e única garantia de uma futura ordem europeia, com os apelos de sempre a Carlos Magno e ao anticomunismo; uma fase no desenvolvimento da ideia europeia sobre a qual os historiadores da Comunidade Europeia do pós-guerra não gostam muito de se deter. As unidades militares não alemãs que lutaram sob a bandeira alemã na Segunda Guerra Mundial, sobretudo como parte das SS, geralmente acentuavam esse elemento transnacional. 

 Por outro lado, fica igualmente claro que nem todos os nacionalismos simpatizavam com o fascismo, e não só porque as ambições de Hitler, e em menor medida de Mussolini, ameaçavam vários deles, como por exemplo os poloneses e tchecos. Na verdade, como veremos (capítulo 5), em vários países a mobilização contra o fascismo iria produzir um patriotismo da esquerda, sobretudo durante a guerra, quando a resistência ao Eixo era feita por “frentes nacionais” ou governos que abrangiam todo o espectro político, excluindo apenas os fascistas e seus colaboradores. Em termos gerais, o nacionalismo local pendia para o fascismo ou não conforme tivesse mais a ganhar do que a perder com o avanço do Eixo, e se seu ódio ao comunismo ou a algum outro Estado, nacionalidade ou grupo étnico (os judeus, os sérvios) era maior que sua antipatia aos alemães e italianos. Assim, os poloneses, embora fortemente antirrussos, não colaboraram significativamente com a Alemanha nazista, enquanto os lituanos e alguns ucranianos (ocupados pela URSS de 1939-41), sim. 

 Por que o liberalismo sofreu uma queda entre as guerras, mesmo em Estados que não aceitavam o fascismo? Os radicais, socialistas e comunistas ocidentais que viveram esse período tinham a tendência a ver a era de crise global como a agonia final do sistema capitalista. Diziam que o capitalismo não mais podia dar-se o luxo de governar através da democracia parlamentar e sob liberdades liberais, que incidentalmente haviam proporcionado a base de poder aos movimentos trabalhistas moderados e reformistas. Diante de problemas econômicos insolúveis e/ou uma classe operária cada vez mais revolucionária, a burguesia agora tinha de apelar para a força e a coerção, ou seja, para alguma coisa semelhante ao fascismo. 

 Como tanto o capitalismo quanto a democracia liberal iriam fazer um retorno triunfante em 1945, é fácil esquecer que havia um núcleo de verdade nessa visão, além de um pouco de retórica de agitação demais. O sistema democrático não funciona se não há um consenso básico entre a maioria dos cidadãos sobre a aceitabilidade de seu Estado e sistema social, ou pelo menos uma disposição de negociar acordos consensuais. Isso, por sua vez, é muito facilitado pela prosperidade. Na maior parte da Europa, essas condições simplesmente não se encontravam presentes entre 1918 e a Segunda Guerra Mundial. O cataclismo social parecia iminente ou já tinha acontecido. O temor da revolução era tal que na maior parte do Leste e Sudeste da Europa, assim como em parte do Mediterrâneo, os partidos comunistas mal conseguiram emergir da ilegalidade. O fosso intransponível entre a direita ideológica e até mesmo a esquerda moderada destruiu a democracia austríaca em 1930-4, embora esta tenha florescido naquele país a partir de 1945 sob exatamente o mesmo sistema bipartidário de católicos e socialistas (Seton Watson, 1962, p. 184). A democracia espanhola desabou sob as mesmas tensões na década de 1930. O contraste com a transição negociada da ditadura de Franco para uma democracia pluralista na década de 1970 é impressionante. 

 Quaisquer que fossem as possibilidades de estabilidade existentes em tais regimes, não puderam sobreviver à Grande Depressão. A República de Weimar caiu em grande parte porque a Grande Depressão tornou impossível manter o acordo tácito entre Estado, patrões e trabalhadores organizados que a mantivera à tona funcionando. A indústria e o governo sentiram que não tinham escolha senão impor cortes econômicos e sociais, e o desemprego em massa fez o resto. Em meados de 1932, nacional-socialistas e comunistas arrebanharam a maioria absoluta dos votos alemães, e os partidos comprometidos com a República ficaram reduzidos a pouco mais de um terço. Por outro lado, é inegável que a estabilidade dos regimes democráticos após a Segunda Guerra Mundial, especialmente a da nova República Federal da Alemanha, apoiou-se nos milagres econômicos dessas décadas (ver capítulo 9). Onde os governos têm o bastante para distribuir e satisfazer a todos que reclamam, e o padrão de vida da maioria dos cidadãos cresce de qualquer modo, a temperatura da política democrática raramente chega ao ponto de ebulição. Tenderam a prevalecer o acordo e o consenso, até os mais ardentes crentes na derrubada do capitalismo acharam o status quo menos intolerável na prática do que na teoria, e mesmo os mais inflexíveis defensores do capitalismo acharam naturais os sistemas de seguridade social e as negociações periódicas de salários e vantagens com os sindicatos. 

 Contudo, como mostrou a própria Grande Depressão, isso é apenas parte da resposta. Uma situação muito semelhante — a recusa dos trabalhadores organizados em aceitar os cortes da Depressão — levou ao colapso do governo parlamentar e finalmente à nomeação de Hitler como chefe de governo na Alemanha, mas na Grã-Bretanha apenas à mudança de um governo trabalhista para um “Governo Nacional” (conservador), dentro de um sistema parlamentar estável e inabalado. [4] A Depressão não levou automaticamente à suspensão ou abolição da democracia representativa, como também é evidente pelas consequências políticas nos EUA (o New Deal de Roosevelt) e na Escandinávia (o triunfo da socialdemocracia). Só na América Latina, onde as finanças dos governos dependiam, em sua maior parte, das exportações de um ou dois produtos primários, cujos preços despencaram de repente e dramaticamente (ver capítulo 3), a Depressão provocou a queda quase imediata de quaisquer governos existentes, sobretudo por golpes militares. Deve-se acrescentar que a mudança política no sentido oposto também se deu no Chile e na Colômbia. 

 No fundo, a política liberal era vulnerável porque sua forma de governo característica, a democracia representativa, em geral não era uma maneira convincente de governar Estados, e as condições da Era da Catástrofe raramente asseguraram as condições que a tornavam viável, quanto mais eficaz. 

 A primeira dessas condições era que gozasse de consentimento e legitimidade gerais. A própria democracia apóia-se nesse consentimento, mas não o cria, a não ser pelo fato de que nas democracias bem estabelecidas e estáveis o próprio processo de eleição regular tende a dar aos cidadãos — mesmo da minoria — a impressão de que o processo eleitoral legitima os governos que produz. Mas poucas das democracias do período entreguerras eram bem estabelecidas. Na verdade, até o início do século XX a democracia era rara fora dos EUA e da França (ver A era dos impérios, capítulo 4). De fato, pelo menos dez Estados da Europa após a Primeira Guerra Mundial ou eram inteiramente novos, ou estavam tão mudados em relação a seus antecessores que não tinham qualquer legitimidade especial para seus habitantes. As políticas dos Estados na Era da Catástrofe eram, na maioria das vezes, as políticas da crise. 

 A segunda condição era um certo grau de compatibilidade entre os vários componentes do “povo”, cujo voto soberano determinava o governo comum. A teoria oficial da sociedade burguesa liberal não reconhecia “o povo” como um conjunto de grupos, comunidades e outras coletividades com interesses como tais, embora antropólogos, sociólogos e todos os políticos praticantes o fizessem. Oficialmente, o povo, mais um conceito teórico que um corpo concreto de seres humanos, consistia de uma reunião de indivíduos autossuficientes, cujos votos se somavam em maiorias e minorias aritméticas, traduzidas em assembleias eleitas como governos majoritários e oposições minoritárias. Na medida que a eleição democrática transpunha as linhas divisórias entre os segmentos da população nacional, ou era possível conciliar ou desarmar os conflitos entre eles, a democracia tornava-se viável. Contudo, numa era de revoluções e tensões sociais radicais, a regra era mais a luta que a paz entre as classes transformada em política. A intransigência ideológica e de classe podia despedaçar o governo democrático. Além disso, os remendados acordos de paz após 1918 multiplicaram o que nós, no fim do século XX, sabemos ser o vírus fatal da democracia, isto é, as divisões do conjunto de cidadãos exclusivamente segundo linhas étnico-nacionais ou religiosas (Glenny, 1992, pp. 146-8), como na ex-Iugoslávia e na Irlanda do Norte. Três comunidades étnico-religiosas votando como blocos, como na Bósnia; duas comunidade inconciliáveis, como no Ulster; 62 partidos políticos, cada um representando uma tribo ou clã, como na Somália, não podem, como sabemos, oferecer a base para um sistema político democrático, mas — a menos que um dos grupos em disputa ou alguma autoridade externa tenha força suficiente para estabelecer o domínio (não democrático) — base apenas para a instabilidade e a guerra civil. A queda dos três impérios multinacionais da Áustria-Hungria, Rússia e Turquia substituiu três Estados supranacionais, cujos governos eram neutros entre as numerosas nacionalidades que governavam, por um número maior ainda de Estados multinacionais, cada um identificado com uma, no máximo duas ou três, das comunidades étnicas dentro de suas fronteiras. 

 A terceira condição era que os governos democráticos não tivessem de governar muito. Os parlamentos tinham surgido não tanto para governar como para controlar o poder dos que o faziam, uma função ainda óbvia nas relações entre o Congresso e a Presidência americanos. Eram mecanismos destinados a agir como freios, que se viram tendo de agir como motores. Assembléias soberanas, eleitas por um sufrágio restrito mas em expansão, tornaram-se cada vez mais comuns a partir da Era das Revoluções, mas a sociedade burguesa do século XIX supunha que o grosso da vida de seus cidadãos teria lugar não na esfera de governo, porém na economia autorregulada e no mundo de associações privadas e não oficiais (a “sociedade civil”). [5] Ela contornava de dois modos as dificuldades de governar através de assembleias eleitas: não esperando muita ação governamental, ou mesmo legislação, de seus parlamentos, e providenciando para que o governo — ou melhor, a administração — pudesse ser exercido independentemente de suas variações. Como vimos (capítulo 1), os corpos de funcionários públicos independentes, nomeados permanentemente, haviam se tornado um mecanismo essencial para o governo dos Estados modernos. Uma maioria parlamentar era essencial apenas onde se tinha de tomar, ou aprovar, decisões executivas importantes ou polêmicas, e a organização e manutenção de um corpo adequado de apoio era a tarefa principal dos líderes do governo, uma vez que (com exceção dos EUA) o executivo em regimes parlamentares não era, em geral, eleito diretamente. Em Estados de sufrágio restrito (isto é, um eleitorado composto sobretudo pela minoria rica, poderosa ou influente), isso era facilitado por um consenso comum sobre o que constituía seu interesse coletivo (o “interesse nacional”), para não falar dos recursos de patronagem. 

 O século XX multiplicou as ocasiões em que se tornava essencial aos governos governar. O tipo de Estado que se limitava a prover regras básicas para o comércio e a sociedade civil, e oferecer polícia, prisões e Forças Armadas para manter afastado o perigo interno e externo, o “Estado-guarda-noturno” das piadas políticas, tornou-se tão obsoleto quanto o “guarda noturno” que inspirou a metáfora. 

 A quarta condição era riqueza e prosperidade. As democracias da década de 1920 desmoronaram sob a tensão da revolução e contrarrevolução (Hungria, Itália, Portugal), ou do conflito nacional (Polônia, Iugoslávia); as da década de 1930, sob as tensões da Depressão. Só precisamos comparar a atmosfera política da Alemanha de Weimar e a Áustria da década de 1920 com a da Alemanha Federal e da Áustria pós-1945 para nos convencermos disso. Mesmo os conflito nacionais eram menos incontroláveis, quando os políticos de cada minoria podiam comer uma fatia do bolo do Estado. Essa era a força do Partido Agrário na única verdadeira democracia da Europa Central, a Tchecoslováquia: oferecia vantagens, que cruzavam as linhas nacionais. Na década de 1930, nem a Tchecoslováquia pôde mais manter juntos os tchecos, eslovacos, alemães, húngaros e ucranianos. 

 Nessas circunstâncias, a democracia tornava-se mais um mecanismo para formalizar divisões entre grupos inconciliáveis que qualquer outra coisa. Muitas vezes, mesmo nas melhores circunstâncias, não produzia nenhuma base estável para um governo democrático, sobretudo quando a teoria da representação democrática se aplicava em rigorosas versões de representação proporcional. [6] Onde, em tempos de crise, não havia maioria parlamentar alguma, como na Alemanha (ao contrário da Grã-Bretanha), [30] a tentação de procurar base em outro lugar era esmagadora. Mesmo em democracias estáveis, as divisões políticas que o sistema implica são vistas por muitos cidadãos mais como custos do que como benefícios do sistema. A própria retórica da política anuncia candidatos e partidos mais como representativos do nacional do que do estreito interesse partidário. Em tempos de crise, os custos do sistema pareciam insustentáveis, e seus benefícios incertos. 

  Assim, é fácil entender que a democracia parlamentar nos Estados sucessores dos velhos impérios, bem como na maior parte do Mediterrâneo e da América Latina, fosse uma frágil planta crescendo em solo pedregoso. O argumento mais forte em seu favor, o de que, por pior que fosse, era melhor que qualquer sistema de governo alternativo, soa pouco atraente. Entre as guerras raramente pareceu realista e convincente, e mesmo seus defensores falavam com pouca confiança. Sua queda parecia inevitável, uma vez que mesmo nos Estados Unidos observadores sérios, mas exageradamente sombrios, diziam que “Isso pode acontecer aqui” (Sinclair Lewis, 1935). Ninguém previa ou esperava a sério seu renascimento no pós-guerra, menos ainda seu retorno, por mais breve que fosse, como a forma de governo predominante em todo o globo na década de 1990. Para os que observavam retrospectivamente, a partir dessa época, o período entreguerras, a queda de sistemas políticos liberais pareceu uma breve interrupção em sua secular conquista do globo. Infelizmente, à medida que se aproximava o novo milênio, as incertezas em torno da democracia política não mais pareciam assim tão remotas. O mundo pode estar, infelizmente, reentrando num período em que as vantagens desse sistema não pareçam mais tão óbvias quanto entre 1950 e 1990.


Notas do autor

[1] O que chega mais perto de uma tal derrubada é a anexação da Estônia pela URSS em 1940, pois na época o pequeno país báltico, tendo atravessado alguns anos autoritários, passara a ter de novo uma constituição mais democrática.

 [2] Esta foi a encíclica Rerum Novarum, complementada quarenta anos depois, e não por acaso no pior da Grande Depressão, pela Quadragesimo Anno. Continua sendo a pedra angular da política social da Igreja até hoje, como atesta a encíclica do papa João Paulo II de 1991, emitida no centenário da Rerum Novarum. Contudo, o equilíbrio preciso de condenação tem variado com o contexto político.

[3] Deve-se dizer, em justiça aos compatriotas de Mussolini, que durante a guerra o exército italiano se recusou terminantemente a entregar judeus para extermínio pelos alemães ou quaisquer outros nas áreas ocupadas — sobretudo no Sudeste da França e partes dos Bálcãs. Embora o governo italiano também demonstrasse uma conspícua ausência de zelo no assunto, cerca de metade da pequena população judia italiana morreu; alguns, porém, mais como militantes antifascistas do que como simples vítimas (Steinberg, 1990; Hughes, 1983).

[4] Um governo trabalhista em 1931 dividiu-se quanto à questão, alguns líderes trabalhistas seus seguidores liberais passaram para os conservadores, que tiveram uma vitória arrasadora na eleição seguinte e permaneceram confortavelmente no poder até maio de 1940.

[5] A década de 1980, no Ocidente e no Oriente, seria tomada por uma retórica saudosista pobre um retorno inteiramente impraticável a um século XIX idealizado, construído com base nesgas suposições.

[6] As intermináveis permutas de sistemas eleitorais democráticos — proporcional ou outros — são todas tentativas de obter e manter maiorias estáveis que permitam governos estáveis em sistemas políticos que, por sua própria natureza, tornam isso difícil.

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