terça-feira, 29 de julho de 2014

Por que o governo simplesmente não aumenta os salários?


 Essa é uma pergunta que todos se fazem, ainda mais depois que o DIEESE estipulou que somente com um salário-mínimo de R$2000 todos poderiam ter um padrão de vida aceitável. A resposta - ao contrário da versão ''senso-comum'' de que o governo federal é simplesmente fdp e quer o sofrimento dos assalariados - exige um certo conhecimento de economia e história do Brasil.

 Por conta dos empréstimos feitos entre 1964 e 2003, o atual governo tem de manter uma política de juros altos e contenção monetária para obter dólares que possibilitem pagar a dívida - que em 2002 chegara a representar 60% do PIB.

 Por isso, o pequeno e o médio empresários - que majoritariamente obtêm seu capital de empréstimos - começam seus negócios já bem endividados, e incluem o valor do pagamento dessa dívida no preço de seus produtos. Suponhamos que José é dono de uma pequena fábrica, com 4 funcionários. Ele divide sua renda mensal da seguinte forma:

*R$2880 (4x720) + R$200 (contas de água e luz) + R$400 (gastos com matéria-prima) = R$3480, que constituem o capital circulante e que foi o dinheiro necessário para começar o negócio. Também chamado de custo de produção.
*R$200 que ele usa para pagar as parcelas do empréstimo que fez e, no futuro, fazer reparos nos instrumentos de trabalho/máquinas; é o capital fixo.
*R$3000, que constituem o ''lucro'' dele, o dinheiro que usa para viver confortável.

 José precisa, portanto, que sua mercadoria retorne R$6680 todo mês, por pelo menos cerca de dois anos (empréstimo de R$3080 com juros de 2% ao mês, pago em vinte e seis parcelas de R$200 e uma de R$20; um total de R$5520).

 Se trocarmos o valor dos salários de R$720 pelos R$2000 do DIEESE, o custo de produção sobe de R$3480 para R$8600! José, que não quer falir nem contrair mais dívidas, faz o óbvio: corta gastos. Ele despede 3 dos 4 funcionários e reduz os gastos com matéria-prima em 3/4, o que faz sua arrecadação mínima necessária descer de R$11800 (R$8600 + R$3200) para R$5500 (R$2300 + R$3200). Suponhamos que os funcionários de José produzissem juntos 100 peças; agora, a produção total será de apenas 25. Para fechar suas contas, José tem de aumentar o preço da unidade de seu produto de R$66,80 para R$220; uma inflação de 328%! (Se um pãozinho que custasse inicialmente R$0,25 sofresse a mesma inflação, passaria a custar R$0,82!) Isto é o que os economistas chamam de estagflação: estagnação produtiva (redução da produtividade) junto à subida dos preços de mercado. Para manter a taxa/proporção de lucro de antes (e, portanto, o padrão de vida de antes), José teria de aumentar ainda mais o preço de seu produto. O cálculo seguinte apresenta a proporção do lucro de José sobre o capital total envolvido na produção com o salário mínimo de R$720,00:

3000/6680 = aprox. 0.45, ou seja: 45%.

 Tendo o custo de vida em geral aumentado na mesma proporção que o salário mínimo, e sendo y a variável que representa o valor em dinheiro que José deverá guardar para si, tem-se uma nova equação:

y/(8800 + y) = 0.45
y = 0.45x8800 + 0.45y
y = 3960 + 0.45y
3960 = 0.55y
y =  aprox. 7200

 Com um só funcionário, a nova arrecadação mínima necessária de José obedecerá as seguintes contas:

R$2300 + R$7200 = R$9500

 O preço dos produtos do nosso empreendedor também aumentarão:

R$9500/25 = R$380

 Por fim, tem-se uma inflação de 614% em relação ao preço original (R$61,80).

 Uma situação dessas gera um espiral de desemprego, que por sua vez conduz à queda dos salários (empresários reduzirão os salários de quem recebe mais para compensar o aumento do salário dos funcionários que recebem salário mínimo, de forma que mantenham seu volume de lucro) e concentração de capitais, já que muitas empresas faliriam por falta de demanda (os assalariados que ganhariam R$2000 não comprariam produtos que estão 3 ou mais vezes mais caros que antes só porque tiveram aumento). Uma situação do tipo só se normalizaria com uma grande entrada de moeda no mercado, para estimular o consumo e subsidiar a produção. Infelizmente, nossos tecnocratas monetaristas desaconselhariam o projeto, afirmando que ele poderia - veja só - causar inflação¹. A outra opção seria deixar o mercado se ''autorregular'', isto é: permitir a formação de poderosos monopólios e oligopólios enquanto toda a antiga classe de pequenos capitalistas adentra a classe trabalhadora, submetendo-se às condições da grande burguesia, os possuidores de capital grande o suficiente para suportar a crise e incorporar a demanda que antes era atendida pelos concorrentes menores.

1 - Segundo o modelo monetarista, com a oferta dada, os preços se reduzem em resposta a uma queda da quantidade de dinheiro, com ou sem excesso de demanda. No modelo keynesiano, os preços caem significativamente somente se a situação inicial era de excesso de demanda. Caso contrário, o efeito principal é uma redução da quantidade produzida e um aumento do desemprego - algo semelhante ao que ocorreu durante o governo de Campos Sales (1898-1902), que tentou combater a inflação através de redução da quantidade de moeda circulante no país, seja por ''confisco'' ou corte dos investimentos públicos [o que também, teoricamente, contribuiria para gerar superávits primários - receita (total de impostos arrecadados) superando as despesas]. O resultado da política econômica de Campos Sales foi falência de indústrias e desemprego em massa, fruto da insuficiência de dinheiro circulante para atender o mercado interno. Quanto à inflação? Poucos anos depois ela estava de volta - e os déficits orçamentários também.



sábado, 26 de julho de 2014

''A política econômica do governo Dilma'', por Ricardo Musse e Carlos Pissardo



''A partir de 2003, os governos do PT estabeleceram por meta principal a reversão da desigualdade social no Brasil. O propósito foi atingido por meio da combinação de distribuição direta de benefícios com aumento real de salários, a partir da elevação consistente de seu piso mínimo, e da ampliação da parcela da população com acesso ao crédito.

Essas políticas geraram consequências facilmente visíveis, como o desmonte de certas conformações políticas locais antirrepublicanas. Seu impacto na economia, no entanto, ainda não foi suficientemente reconhecido. Os programas que inicialmente apareciam como política civilizatória de um partido de esquerda tornaram-se o principal fundamento do ciclo de desenvolvimento que floresceu nos dois governos de Lula da Silva.

Invertendo o cínico clichê dos porta-vozes dos mercados, a divisão do bolo consistiu no principal motor de seu crescimento. Estudo do IPEA mostrou que cada um real gasto com o Bolsa Família teve um impacto de R$ 2,4 no consumo das famílias e R$ 1,78 no PIB. Tudo indica que esse efeito multiplicador da distribuição de renda alavancou o PIB no período.

Tais resultados confirmam a experiência histórica de que o Brasil só obtém altas taxas de crescimento econômico por meio de políticas de inclusão social. Entre 1930 e 1980, período em que o PIB brasileiro manteve um ritmo acelerado, o motor dessa expansão extensiva foram os processos de urbanização e industrialização, capitaneados pela inserção de milhões de pessoas no mercado de trabalho e pela cobertura social da legislação trabalhista.

Por representar a continuidade desse projeto, Dilma Rousseff foi eleita em 2010. Desde então se verifica, entretanto, uma guinada no interior desse modelo. Por certo, seu governo manteve as políticas que propriciam a redução das desigualdades. A renda real do trabalhador continuou tendo aumentos reais nos últimos três anos e não houve recuo nos programas sociais. Mas a tendência parece inercial: é sintomático que, segundo dados do IBGE, o consumo das famílias tenha atingido, em 2013, a menor taxa de crescimento dos últimos 10 anos (2,3%), empatando com o crescimento do PIB.

Em vez de apostar no crescimento da demanda como motor da oferta, a política macroeconômica do atual governo voltou-se para o incentivo direto da oferta: por meio do combate ao alarmado “custo Brasil”, com a política de concessões à iniciativa privada de setores logísticos antes geridos pelo Estado; pelo controle artificial dos preços administrados; pela concessão crescente de incentivos fiscais. Segundo dados da Receita Federal, estes últimos custaram ao tesouro, em 2013, R$ 77,8 bilhões. A previsão é de que, em 2014, essa quantia chegue a 94,3 bilhões – cerca de quatro vezes o valor reservado para o Programa Bolsa Família.

As principais decisões do governo na área econômica andam de mãos dadas com a agenda da FIESP; atendem às pautas da indústria e, a rigor, só dela. Mas se estamos diante de um projeto “neodesenvolvimentista”, trata-se de um neodesenvolvimentismo sem desenvolvimento. Apesar de todos os incentivos à oferta, a taxa de investimento não se amplia. Apesar dos estímulos ao capital local – incluindo uma exitosa desvalorização do real sem surto inflacionário – a indústria patina e se justifica reclamando mais e mais “apoio”.

Dificilmente o almejado crescimento sustentável será obtido sem a deflagração de nova onda de inclusão social. Esse ciclo deve se orientar não apenas pelas estratégias já conhecidas de distribuição de renda, mas sobretudo por mecanismos indiretos. Nessa direção, seria recomendável implantar um ousado programa de investimentos em serviços públicos, em especial, na saúde, educação e transporte, desencadeado pela adoção das reformas tributárias, urbana e agrária.

A acreditar na palavra de seus economistas, as duas principais forças eleitoriais da oposição não estão comprometidas com uma política desse tipo. Cabe à esquerda, dentro e fora do PT, promover sua defesa.''

Enviado ao Blog da Boitempo pelo autor, este artigo foi publicado também na revista Carta Capital, n. 795, em abril de 2014 (p. 50-51).  

''Estagflação e salários'', Edmar Bacha

Em uma coleção de ensaios escritos na Universidade de Harvard em 1976-77, Edmar Bacha procurou delinear alguns dos principais problemas de economia política que o Brasil enfrentava. Como não poderia deixar de ser, ele analisou a estagflação - a incrível mistura de estagnação produtiva e inflação alta, normalmente antagônicas -, e demonstrou como o processo se dava, além da forma como o governo a combatia.
    
Edmar Lisboa Bacha (Lambari, Minas Gerais, 1942) é um economista brasileiro. Participou da equipe econômica que instituiu o Plano Real, durante o governo Itamar Franco. Desde 2003, é diretor do ''think tank'' Casa das Garças, instituição dedicada a estudos e debates de Economia, no Rio de Janeiro.
                                 

''O empresariado brasileiro trabalha com altas taxas de endividamento a curto prazo; seu capital de giro é quase integralmente formado a partir de recursos obtidos do sistema financeiro. O empresariado está, assim, numa situação de extrema dependência em relação à disponibilidade e o custo do crédito a curto prazo.

 Este simples fato se encontra à raiz do fenômeno de estagflação, ou seja, a mistura de inflação e estagnação que se manifesta todas as vezes em que o governo embarca numa política de contenção monetária.

 Ao fechar-se a torneira do crédito, as taxas de juro a curto prazo tendem a estourar. O custo variável de produção eleva-se substancialmente, devido à dependência do empresariado ao crédito bancário. Custos mais altos, por um lado, conduzem a preços mais elevados; por outro, forçam uma redução da quantidade produzida. O aumento de preços é uma reação bem entendida. A redução da quantidade produzida é consequência da redução do grau de utilização da capacidade instalada, que se torna necessária devido à elevação dos custos unitários de produção. Desativam-se os equipamentos e reduzem-se os níveis e reduzem-se os turnos extras de trabalho, pois estes se tornam anti-econômicos aos novos níveis de custos.

 Encarando-se o problema do lado da oferta fica claro que a restrição monetária leva a maiores preços e a menor produção. Como, então, pode haver uma crença tão arraigada de que, mesmo em curto prazo, uma menor quantidade de moeda (corrente) está associada a um melhor nível de preços?

  A explicação está em que os fenômenos de oferta antes assinalados não entram na cogitação dos modelos macroeconômicos que informam os preconceitos correntes sobre essa matéria. O modelo monetarista nega a possibilidade de desemprego voluntário e determina a oferta de bens a partir da disponibilidade de mão-de-obra. Nesse modelo, os preços dos bens são determinados diretamente pela quantidade de moeda disponível. O modelo keynesiano admite a possibilidade de desemprego involuntário, mas deprecia a importância do capital de giro. A oferta de bens é fixada pelas condições de demanda, e o preço de oferta pelo custo unitário de mão-de-obra. No modelo keynesiano, mais moeda implica em maior demanda e, portanto, em oferta mais alta. Como se supõe que os custos sejam crescentes com a quantidade produzida, os preços serão também mais altos.

 Ambos os modelos veem a influência da restrição monetária unicamente sob a ótica da procura. Ao apertar-se o torniquete monetário nesses modelos os empresários colocam no giro os seus recursos próprios, e reduzem o volume de investimentos em execução. A queda de investimentos provoca uma redução magnificada da procura. Reduz-se, assim, o excesso de demanda, cuja existência determina a contenção monetária. Menos demanda excedente significa menor taxa de inflação.

 No modelo monetarista, com a oferta dada, os preços se reduzem em resposta à uma queda da quantidade de dinheiro com ou sem excesso de demanda. No modelo keynesiano, os preços caem significativamente somente se a situação inicial era de excesso de demanda. Caso contrário, o efeito principal é uma redução da quantidade produzida e um aumento do desemprego.

 É inegável que a restrição monetária tem um efeito depressivo sobre a demanda. Mas, no caso brasileiro, é possível que a oferta diminua ainda mais do que a demanda em resposta a uma elevação da taxa de juros. Consequentemente, o corte de crédito poderá aumentar ao invés de diminuir o excesso de demanda. Se há mais demanda excedente, a taxa de elevação dos preços também será mais alta.

 Mesmo se levando em conta o que ocorre do lado da demanda, dada a extrema dependência do empresariado brasileiro em relação ao crédito bancário, é provável que uma restrição creditícia  resulte de fato em menos produção e mais inflação, ou seja, em estagflação.

 Como resolver o problema? Depende do contexto político. No Brasil, desde 1964 a solução tem sido o arrocho salarial. Vejamos como isso funciona.

 Do lado da oferta, a coisa é simples. O arrocho reduz os custos unitários variáveis. A propensão dos empresários é, assim, a de reduzir os preços e aumentar a produção. Do lado da demanda, o arrocho transfere renda dos assalariados para os não-assalariados. É provável que estes tenham uma propensão a gastar menor do que aqueles. Em consequência, a demanda se reduz. Tudo funciona conforme previsto. Se a situação de partida é o excesso de demanda, depois do arrocho há mais oferta e menos demanda. Portanto, menos inflação.

 O processo de ajuste se faz às custas da classe assalariada. É a redução de seu dispêndio que garante o equilíbrio de oferta e procura. A queda da taxa de inflação deve ser imputada ao retorno do arrocho salarial. A contenção monetária só serve para sobrepor uma estagflação à iniquidade da política salarial do governo.'' (Política Econômica e Distribuição de Renda, Ed. Paz e Terra, 1978.)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Nietzsche e os sacerdotes



 ''O sacerdote, essa espécie parasitária que existe às custas da toda vida sã, usa o nome de Deus em vão: chama o estado da sociedade humana no qual ele próprio determina o valor de todas as coisas de “o reino de Deus”; chama os meios através dos quais esse estado é alcançado de “vontade de Deus”; com um cinismo glacial, avalia todos povos, todas épocas e todos indivíduos através de seu grau de subserviência ou oposição do poder da ordem sacerdotal. Observemo-lo em serviço: pelas mãos do sacerdócio judaico a grande época de Israel transfigurou-se em uma época de declínio; a Diáspora, com sua longa série de infortúnios, foi transformada em uma punição pela grande época — na qual os sacerdotes ainda não significavam nada. Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heróis poderosos e absolutamente livres da história de Israel ou em fanáticos miseráveis e hipócritas, ou em homens totalmente “ímpios”. Reduziram todos grandes acontecimentos à estúpida fórmula: “obedientes ou desobedientes a Deus”. — E foram mais adiante: a “vontade de Deus” (em outras palavras, as condições necessárias para a preservação do poder dos sacerdotes) tinha de ser determinada — e para tal fim necessitavam de uma “revelação”. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literária teve de ser perpetrada, “sagradas escrituras” tiveram de ser forjadas — e então, com grandiosa pompa hierática e dias penitência e muita lamentação pelos longos dias de “pecado” agora terminados, foram devidamente publicadas. A “vontade de Deus”, ao que parece, há muito já havia sido estabelecida; o problema foi que a humanidade negligenciou as “sagradas escrituras”… Mas a “vontade de Deus” já havia sido revelada a Moisés… O que ocorreu? Simplesmente isto: os sacerdotes tinham formulado, de uma vez por todas e com a mais estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior até o menor (— não se esquecendo dos mais apetitosos cortes de carne, pois o sacerdote é um grande apreciador de bifes); em suma, ele disse o que desejava ter, qual era a “vontade de Deus”… Desse tempo em diante as coisas se organizam de tal modo que o sacerdote tornou-se indispensável em todos os lugares; em todos os importantes eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, para não falar no “sacrifício” (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os desnaturalizar — na expressão usada por ele próprio, para “santificá-los”… Para que se entenda isto, é bom salientar o seguinte: que todo hábito natural, toda instituição natural (o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres), tudo que é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é reduzido a algo absolutamente imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo dos sacerdotes (ou, se alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção — um poder para criar valores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da natureza… O sacerdote deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. — A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao sacerdote, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao sacerdote; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o sacerdote vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”… Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” — ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao sacerdote.''

Esquerdismo e individualidade


O direito constitui a regulação de uma boa convivência entre os indivíduos numa sociedade. Ele é a base para a manutenção das liberdades individuais na medida em que elas são possíveis dentro de uma vida social. Infelizmente, alguns membros da esquerda política ainda não compreenderam a importância destas liberdades... 

 Há, em certos setores da esquerda, uma crença de que o altruísmo é o ''modo de vida'' ideal e que não se pode pensar em ganhos puramente pessoais - uma espécie de antítese à retórica direitista/neoliberal de que o egoísmo é o ''modo de vida'' ideal, mas que se pode ser altruísta se for de desejo próprio. Creio que as duas concepções estão equivocadas.

 Não vou me estender numa crítica ao lado direitista dessa moeda; o imperialismo, a desigualdade econômica absurda por concentração de riquezas, o ''penal state'' e as constantes agressões de empreitadas capitalistas ao meio-ambiente são exemplos bem-conhecidos de porquê esse ideário é condenável. Analisemos o lado esquerdista: ele supõe que o indivíduo só tem valor enquanto útil ao coletivo, e que todas as suas ações devem se pautar em beneficiar aquele.

 A seguir, alguns exemplos desse modelo de pensamento.

 ''A HOMOFOBIA É UM PROBLEMA ECONÔMICO

Quando o assunto é combate à homofobia, existem argumentos de diversas naturezas. 
Uma boa parte deles se constitui em apelo emocional, pensamento pós-moderno ou discurso idealista. Esses casos devem ser evitados, pois apesar da boa intenção, abrem espaço para interpretações subjetivas sobre o tema.

Mas antes de prosseguir, vale só refutar um tipo de argumento que sem dúvidas é o pior de todos:
"Eu que eu faço de minha vida sexual só diz respeito à mim. Onde está minha liberdade individual?"

Não existe essa história de "o que eu faço de minha vida privada só diz respeito à mim". O ser humano não vive isolado, e quase tudo o que alguém faz individualmente sempre intervirá no coletivo de alguma maneira.
A própria noção de "liberdade individual" não condiz com a realidade científica, pois já foi demonstrado que nossa mente é fortemente influenciada pelo meio social e biológico.
Portanto, esse jusnaturalismo sobre "liberdades individuais" é um argumento pseudocientífico e reacionário.

Sendo assim, vamos para o que realmente importa. Uma boa argumentação seria tratar o tema em uma abordagem racional e materialista. 
As perguntas a serem feitas devem ser: 
Quais são as implicação materiais que envolvem a Homossexualidade e a Homofobia? Como a homofobia pode trazer impactos materiais ao coletivo? Prosseguiremos.

O Método Científico já comprovou que a homossexualidade ocorre naturalmente não só na Sociedade Humana, mas também em outras espécies de animais.
Além disso, existem diversas técnicas de reprodução artificial, e a adoção é perfeitamente possível para casais homossexuais. Assim, a homossexualidade não é (e principalmente hoje em dia) ameaça alguma à reprodução da espécie, nos casos em que ela seja necessária.

Logo, a homossexualidade não representa nenhum obstáculo ao desenvolvimento da produção, e qualquer perseguição homofóbica por si só já é um enorme desperdício de tempo e energia.

Além disso, a discriminação social e o bullying agravam os níveis de individualismo e apatia na Sociedade. 
Isso é péssimo para o desenvolvimento das forças produtivas, pois em um estágio de evolução tecnológica onde a produção é socializada, se torna indispensável que as relações de produção também sigam o mesmo caráter. 
Caso contrário, as forças produtivas são arruinadas, e é exatamente o que acontece em um ambiente selvagem e individualista que a discriminação ajuda a criar. 
As pessoas conseguem evoluir melhor quando são respeitadas e bem aceitas no meio em que vivem, assim como apresentam menores riscos de contraírem problemas psicológicos.
Assim, a homofobia, que é uma forma de discriminação social, não só é um desperdício de tempo e energia, como também prejudica o aperfeiçoamento da produção.

Mas não pára por aí. O sexo está entre as atividades lúdicas mais eficientes para o ser humano, pois oferece uma grande quantidade de prazer, para um consumo quase nulo de recursos. Pode parecer cômico, mas o sexo é uma necessidade humana como qualquer outra, e pode ser visto sob um viés econômico.

O que a Homofobia faz é dificultar o acesso ao sexo para as pessoas não-héteros. 
Com menos acesso à sexualidade, o nível de satisfação média diminui, o que prejudica a produtividade e a capacidade criativa dessas pessoas, além de forçá-las a substituírem a atividade sexual com outros métodos mais onerosos e ineficientes de entretenimento. Logo, mais desperdícios.

No âmbito emocional não é diferente. Assim como o sexo, muitas pessoas têm a necessidade de se envolverem sentimentalmente com outras. O carinho e o afeto trazem grandes benefícios com um baixo consumo de recursos, e assim a homofobia também provoca prejuízos materiais nesse aspecto.

Para não citar também as consequências materiais diretas da homofobia, quando LGBTs são expulsos de casa, agredidos ou assassinados. Além das implicações óbvias que isso gera no meio social, também se prejudica (ou até mesmo se destrói) gratuitamente o potencial produtivo dessas pessoas.

Assim sendo, a homofobia se trata de um problema econômico. O que ela faz não só é desperdiçar, mas também derrocar as forças de produção, com enormes prejuízos para o desenvolvimento social e tecnológico.

Quem é homofóbico contribui para aumentar o nível de pobreza na Humanidade, e também para atrapalhar o progresso técnico e científico.
Portanto, é principalmente por isso que a homofobia deve ser combatida, e não em nome de "liberdades individuais" ou qualquer outro tipo de discurso idealista e pós-moderno.''

 O autor do texto supõe que a homofobia seja um problema econômico porque o preconceito social faz a produtividade dos indivíduos gays cair. A correlação (essa estigmatização fazer a produtividade dos indivíduos gays cair ser problemático) pode ser verdadeira, mas a causalidade não. Ainda que a homofobia fizesse a produtividade dos homossexuais aumentar, ela não deixaria de ser um problema. Ela o é porque é um preconceito contra uma condição para a qual não há escolha, e contra o direito individual de se relacionar com aquele(a) por quem se sente afeto. Ela é um problema porque fere a liberdade mais fundamental: a liberdade de ser.

 ''Os extermínios nos gulags foram válidos, e o assassinato da família do czar Nicolau II também.''

 
O argumento desse camarada - um marxista comunista que, pode-se dizer, é minha contraparte teórica - é o de que os kulaks (fazendeiros ricos que se opunham à coletivização das terras por Stalin e deram nome aos famosos campos de extermínio na Sibéria) mereciam ser punidos, já que sua atitude não permitia a concretização do ''bem coletivo.'' E que punição seria essa? Nada menos que a morte. Também o fuzilamento da família real fora legítimo, segundo ele, porque se permanecesse viva (e caso a revolução russa falhasse), a velha monarquia hereditária poderia retornar à Rússia.

 Meu contra-argumento principal para os dois casos é simples: o direito à vida é fundamental para qualquer sociedade humanista. No caso dos kulaks - por mais cretinos que fossem -, a desapropriação das terras já lhes seria castigo suficiente (uma vez que estavam acostumados com o modelo de propriedade privada). Que vivessem, trabalhassem e ganhassem proporcionalmente ao seu trabalho! No caso do Nicolau II (que havia, é verdade, governado de forma puramente autoritária e aristocrática, a exemplo do massacre da revolução de 1905) e sua família, o exílio em uma região muito bem protegida pelo Exército Vermelho bastaria.

 Muito mais pode ser dito aqui, inclusive o seguinte Reductio Ad Absurdum: se uma multidão de jovens quiser dar uma festa num final de semana à noite, para recarregar as energias gastas durante a semana de trabalho, na mesma casa em que mora uma velhinha de 90 anos, esta deve ser obrigada a aceitar, já que do contrário estaria prejudicando o ''bem coletivo'', reduzindo a produtividade daqueles jovens. 

 Bom, é isso. Uma esquerda que anseie por ser simultaneamente ética, racionalista e poderosa deve aprender a balancear o indivíduo e o social, e sustentar que embora o altruísmo seja o ''modo de vida'' ideal, as pessoas não devem ser forçadas a segui-lo - tal como faz a maioria dos partidos democráticos de esquerda ao redor do mundo. Só desta forma as acusações de ''coletivismo'' perderão qualquer sentido.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

''Marx hoje'', por Eric Hobsbawm

Para o falecido eminente historiador britânico, Marx permanece como um analista fundamental do desenvolvimento histórico e do funcionamento da economia capitalista, mas as formas de interpretar e usar sua obra no século XXI serão muito diferentes das do século passado.


I

''Em 2007, a Jewish Book Week realizou-se menos de uma quinzena antes da comemoração
do aniversário da morte de Karl Marx (14 de março) e a pouca distância da Sala Redonda de
Leitura do Museu Britânico, o lugar em Londres a que ele é sempre associado. Dois socialistas
muito diferentes, Jacques Attali e eu, participamos do evento para lhe prestar nossas honras
póstumas. No entanto, considerando-se a ocasião e a data, a homenagem encerrava duas
surpresas. Não se pode dizer que ao morrer, em 1883, Marx tivesse propriamente fracassado,
pois seus textos tinham começado a causar impacto na Alemanha (onde um movimento
encabeçado por discípulos seus já estava a caminho de controlar o movimento operário
alemão) e, principalmente, sobre intelectuais na Rússia. Entretanto, em 1883 havia pouca
coisa que justificasse o trabalho de toda a sua vida. Marx havia escrito alguns panfletos
brilhantes e a base de sua obra magna, inacabada, O capital, trabalho que pouco avançou na
última década de vida do autor. “Que obras?”, retrucou ele, acabrunhado, quando um visitante
lhe perguntou sobre suas obras. A chamada Primeira Internacional de 1864-73, sua principal
iniciativa política desde o fracasso da revolução de 1848, tinha ido a pique. Tampouco ele
granjeara para si um lugar importante na política ou na vida intelectual da Grã-Bretanha, onde
vivera como exilado durante mais de metade da vida.

Entretanto, que extraordinário êxito póstumo! Menos de 25 anos após sua morte, partidos
políticos operários fundados em seu nome, ou que afirmavam inspirar-se nele, recebiam de
15% a 47% dos votos em países com eleições democráticas — sendo a Grã-Bretanha a única
exceção. Depois de 1918, a maioria desses partidos passou a fazer parte dos governos,
deixando de ser apenas oposição, e assim eles permaneceram até depois do fim do fascismo,
quando então se dispuseram a repudiar sua inspiração original. Todos existem ainda. Nesse
meio-tempo, discípulos de Marx criaram grupos revolucionários em países não democráticos e
no Terceiro Mundo. Setenta anos após a morte de Marx, um terço da humanidade vivia sob
regimes regidos por partidos comunistas que alegavam representar suas ideias e materializar
suas aspirações. Bem mais de 20% da humanidade ainda vivem em países comunistas, embora
seus partidos governistas, com pequenas exceções, tenham mudado radicalmente sua política.
Em suma, se houve um pensador que deixou uma marca forte e indelével no século XX, foi ele.
No Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século xix — Karl Marx e Herbert
Spencer — e, curiosamente, da tumba de um se avista a do outro. Quando ambos eram vivos,
Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas
ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo. Hoje ninguém sequer sabe
que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia,
visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de
ser enterrados à sua sombra.

A era de regimes comunistas e de partidos comunistas de massa chegou ao fim com a
derrocada da União Soviética, pois mesmo onde ainda sobrevivem, como na China e na Índia,
na prática abandonaram o velho projeto do marxismo-leninismo. E, quando assim procederam,
Karl Marx viu-se mais uma vez numa terra de ninguém. O comunismo alegara ser seu único
herdeiro verdadeiro, e suas ideias tinham sido em grande medida identificadas com o
movimento. Isso porque mesmo as tendências marxistas ou marxistas-leninistas dissidentes
que fincaram cabeças de ponte aqui e ali, depois que Stálin foi denunciado por Kruchev, em
1956, eram, quase certamente, cisões de partidos comunistas. Assim, durante a maior parte
dos primeiros vinte anos depois do centenário de sua morte, Marx se tornou, a rigor, um
homem do passado, que já não merecia que nos incomodássemos com ele. Houve mesmo um
jornalista que deu a entender que o fato de falarmos sobre ele aqui, esta noite, é uma tentativa
de resgatá-lo da “lata de lixo da história”. No entanto, Marx é hoje, mais uma vez, e com toda
justiça, um pensador para o século XXI.

Não creio que se deva dar demasiada importância à pesquisa de opinião da bbc segundo a
qual os ouvintes britânicos o apontavam como o maior de todos os filósofos, mas, se
digitarmos seu nome no Google, ele continua a ser a maior de todas as grandes presenças
intelectuais, só superada por Darwin e Einstein, mas bem à frente de Adam Smith e Freud.

Em meu entender, há duas razões para isso. A primeira é que o fim do marxismo oficial na
União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os
regimes leninistas na prática. Ficou claríssimo que havia ainda muitas e boas razões para se
levar em conta o que Marx tinha a dizer sobre o mundo. E principalmente — essa é a segunda
razão — porque o mundo capitalista globalizado que surgiu na década de 1990 exibia, em
vários aspectos vitais, uma estranha semelhança com o mundo previsto por Marx no Manifesto
comunista. Isso ficou claro na reação do público ao sesquicentenário desse surpreendente
panfleto em 1998 — que foi, diga-se de passagem, um ano de enorme perturbação na
economia global. Dessa vez, paradoxalmente, quem redescobriu Marx foram os capitalistas, e
não os socialistas, que estavam desalentados demais para comemorar a data com muito
entusiasmo. Lembro-me de como fiquei atônito ao ser procurado pelo editor da revista de
bordo da United Airlines, de cujos leitores 80% devem ser executivos americanos. Eu havia
escrito um artigo sobre o Manifesto. Como ele achava que os leitores da revista estariam
interessados num debate sobre o Manifesto, perguntou se eu o autorizava a usar trechos de
meu artigo. Fiquei ainda mais espantado quando, num almoço mais ou menos na virada do
século, George Soros me perguntou o que eu achava de Marx. Por saber o quanto nossas ideias
eram divergentes, preferi evitar uma discussão e dei uma resposta ambígua. “Esse homem”,
disse Soros, “descobriu uma coisa com relação ao capitalismo, há 150 anos, em que devemos
prestar atenção.” E tinha descoberto mesmo. Pouco depois disso, autores que, ao que eu saiba,
nunca tinham sido comunistas voltaram a olhar para ele com seriedade, como faz Jacques
Attali em seu novo estudo sobre Marx. Attali também crê que Marx ainda tem muito a dizer
àqueles que desejam que o mundo seja uma sociedade diferente e melhor do que a que temos
atualmente. É bom lembrar que mesmo desse ponto de vista precisamos levar Karl Marx em
conta hoje em dia.

Em outubro de 2008, quando o jornal londrino Financial Times estampou a manchete
“Capitalismo em convulsão”, não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta aos
refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o
começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do
século XXI será, com certeza, bem diferente do Marx do século XX.

Três fatos dominavam o pensamento das pessoas sobre Marx no século passado. O primeiro
era a divisão entre os países nos quais a revolução era uma probabilidade e aqueles em que
isso não acontecia, ou seja, para falar em termos muito gerais, os países de capitalismo
desenvolvido do norte do Atlântico e do Pacífico, de um lado, e os restantes, do outro. O segundo fato decorre do primeiro: a herança de Marx bifurcou-se, naturalmente, numa herança social-democrata e reformista e numa herança revolucionária, esta dominada esmagadoramente pela Revolução Russa. Isso ficou claro depois de 1917 devido a um terceiro fato: o colapso do capitalismo e da sociedade burguesa oitocentistas naquela que chamei de a “Era da Catástrofe”, entre, digamos, 1914 e o fim da década de 1940. Essa crise foi tão grave que fez com que muitos duvidassem que o capitalismo pudesse se recuperar. Estaria ele destinado a ser substituído por uma economia socialista, como previra o marxista Joseph Schumpeter na década de 1940? Na realidade, o capitalismo se recuperou, mas não em sua forma anterior. Ao mesmo tempo, na União Soviética, uma alternativa socialista parecia ser imune a esfacelamento. Entre 1929 e 1960, não parecia impossível, mesmo para muitos não socialistas que reprovavam o lado político desses regimes, que o capitalismo estivesse perdendo forças e que a União Soviética estivesse provando que poderia produzir mais do que ele. Em 1957, o ano do Sputnik, isso não parecia absurdo. Mas era, o que ficou mais do que evidente depois de 1960.

Esses fatos e suas implicações para a política e a teoria pertencem ao período posterior à
morte de Marx e Engels. Situam-se fora do campo da experiência e das avaliações do próprio
Marx. Nosso juízo quanto ao marxismo do século XX não se baseia no pensamento do próprio
Marx, e sim em interpretações ou revisões póstumas do que ele escreveu. No máximo
podemos dizer que no fim da década de 1890, durante a primeira crise intelectual do
marxismo, a primeira geração de marxistas, aqueles que tinham mantido contato pessoal com
Marx ou, mais provavelmente, com Friedrich Engels, já começavam a discutir algumas
questões que se tornariam relevantes no século XX, como o revisionismo, o imperialismo e o
nacionalismo. Grande parte do debate marxista posterior é específico ao século XX, e não é
encontrado em Karl Marx, sobretudo o debate sobre como poderia ou deveria ser uma
economia socialista, uma discussão que surgiu, em grande parte, da experiência das economias
de guerra de 1914-8 e das crises quase revolucionárias ou revolucionárias do pós-guerra.

Assim, dificilmente Marx poderia ter afirmado que o socialismo era superior ao capitalismo
como meio de garantir o máximo de rapidez no desenvolvimento das forças de produção. Essa
assertiva pertence à era em que a crise capitalista do entreguerras confrontou-se com a União
Soviética dos planos quinquenais. Na realidade, o que Karl Marx asseverava não era que o
capitalismo havia alcançado o limite de sua capacidade de pôr em marcha as forças de
produção, e sim que a irregularidade do crescimento capitalista produzia crises periódicas de
superprodução que, mais cedo ou mais tarde, se mostrariam incompatíveis com a maneira
capitalista de gerir a economia e geraria conflitos sociais aos quais ele não poderia sobreviver.
Por sua própria natureza, o capitalismo era incapaz de estruturar a subsequente economia da
produção social. Esta, julgava Marx, teria de ser necessariamente socialista.

Por conseguinte, não surpreende que no século XX o “socialismo” estivesse no cerne dos
debates e das avaliações sobre Karl Marx. Isso não aconteceu porque o projeto de uma
economia socialista seja especificamente marxista — não é —, mas porque todos os partidos
de inspiração marxista tinham em comum esse projeto, e na verdade os partidos comunistas
afirmavam tê-lo instituído. Na forma em que existiu no século XX, esse projeto está morto. O
“socialismo”, como o conceito era entendido na União Soviética e nas demais “economias de
planejamento central”, vale dizer, nas economias centralizadas, teoricamente sem mercado e
de propriedade e controle estatais, morreu e não ressuscitará. As aspirações social-democratas
de construir economias socialistas tinham sido sempre ideais para o futuro, porém mesmo
como aspirações formais foram abandonadas no fim do século.

Em que medida eram marxianos o modelo de socialismo que existia na mente dos socialdemocratas
e o socialismo criado pelos regimes comunistas? Com relação a esse ponto, é
crucial lembrar que o próprio Marx se absteve, deliberadamente, de quaisquer declarações
específicas sobre a economia ou as instituições econômicas do socialismo e nada disse a
respeito da forma concreta de uma sociedade comunista, exceto que ela não poderia ser
construída ou programada, mas que teria de se desenvolver a partir de uma sociedade
socialista. As observações genéricas que fez sobre o assunto, como na Crítica do programa de
Gotha, dos social-democratas alemães, pouca orientação específica dão a seus sucessores, e na
realidade esses sucessores não pensaram seriamente naquilo que, segundo eles, seria um
problema acadêmico ou um exercício utópico para depois da revolução. Bastava saber que se
basearia — para citar o famoso “artigo 4” da constituição do Partido Trabalhista britânico —
“na propriedade comum dos meios de produção”, o que, de modo geral, julgava-se que seria
factível com a nacionalização das indústrias do país.

Curiosamente, a primeira teoria sobre uma economia socialista centralizada não partiu de
socialistas, mas de um economista italiano não socialista, Enrico Barone, em 1908. Até que
surgisse a questão da nacionalização das indústrias privadas na agenda da política prática, ao
fim da Primeira Guerra Mundial, ninguém mais havia pensado no assunto. Na época, os
socialistas enfrentavam os problemas de todo despreparados e sem orientação do passado ou
de outras pessoas.

Em qualquer forma de economia socialista está implícito o “planejamento”, porém Marx
nada disse de concreto sobre isso, e, quando o planejamento foi posto em prática na Rússia
soviética, depois da revolução, teve de ser em grande medida improvisado. Na teoria, isso foi
feito mediante a formulação de conceitos (como a análise de insumo-produto de Leontiev) e o
fornecimento das estatísticas relevantes. Mais tarde, esses instrumentos foram adotados
amplamente em economias não socialistas. Na prática, isso se fez imitando as economias de
guerra, igualmente improvisadas, principalmente a alemã, talvez com especial atenção à
indústria elétrica, em relação à qual Lênin era informado por simpatizantes políticos que
trabalhavam como executivos em empresas alemãs e americanas de eletricidade. Uma
economia de guerra continuou a ser o modelo básico da economia planificada soviética, ou
seja, uma economia que define certas metas a priori — industrialização ultrarrápida, vitória
na guerra, fabricação de uma bomba atômica ou viagem à Lua — e depois planeja o modo de
concretizá-las por meio da alocação de recursos, qualquer que seja o custo a curto prazo. Não
há nisso nada de exclusivamente socialista. Trabalhar para atingir metas definidas a priori
pode ser feito com maior ou menor sofisticação, mas a economia soviética nunca, na verdade,
foi além disso. E, embora tentasse a partir de 1960, nunca conseguiu sair do beco sem saída
que estava implícito na tentativa de ajustar mercados a uma estrutura de comando burocrática.
A social-democracia modificou o marxismo de outra maneira, postergando a construção de
uma economia socialista ou, de modo mais positivo, elaborando formas diferentes de uma
economia mista. Já que os partidos social-democratas mantiveram-se comprometidos com a
criação de uma economia plenamente socialista, impunha-se alguma reflexão sobre o assunto.

A contribuição mais interessante proveio de pensadores não marxistas, como os fabianistas
Sidney e Beatrice Webb, que imaginaram uma transformação gradual do capitalismo em
socialismo mediante uma série de reformas irreversíveis e cumulativas, e que, portanto,
dedicaram alguma reflexão política à forma institucional do socialismo, embora sem nenhuma
atenção a suas operações econômicas. O principal “revisionista” marxista, Eduard Bernstein,
abordou a questão com evasivas, insistindo que o movimento reformista era o mais importante
e que o objetivo final não tinha realidade prática. Na verdade, a maioria dos partidos socialdemocratas que ascenderam ao governo depois da Primeira Guerra Mundial optou pela
política de revisionismo, permitindo o funcionamento da economia capitalista, desde que
atendesse a algumas das exigências da classe operária. O locus classicus dessa atitude foi o
livro de Anthony Crosland The future of socialism (1956), segundo o qual, como o capitalismo
pós-1945 tinha dado solução ao problema de produzir uma sociedade de abundância, a
empresa pública (na forma clássica de nacionalização ou outra) não era necessária e a única
tarefa dos socialistas se reduzia a garantir uma distribuição equitativa da riqueza nacional.
Tudo isso estava bem distante de Marx, e, com efeito, da forma como os socialistas viam o
socialismo — em essência como uma sociedade sem mercado, uma tese que provavelmente
era também a de Karl Marx.

Quero acrescentar apenas que o debate mais recente sobre o papel do Estado e das empresas
estatais, travado entre os neoliberais em matéria de economia, de um lado, e seus críticos, de
outro, não é, em princípio, um debate especificamente marxista ou mesmo socialista. Ele
repousa na tentativa, surgida na década de 1970, de traduzir uma degeneração patológica do
princípio do laissez-faire em realidade econômica pela recusa sistemática dos Estados a
qualquer controle ou regulamentação das atividades das empresas com fins lucrativos. Essa
tentativa de entregar a sociedade humana ao mercado (supostamente) autocontrolador e
maximizador da riqueza e até do bem-estar, integrado (supostamente) por atores dedicados à
busca racional de seus interesses, não tinha precedentes em nenhuma fase anterior do
desenvolvimento capitalista em nenhuma economia desenvolvida, nem mesmo nos Estados
Unidos. Foi uma reductio ad absurdum da interpretação que seus ideólogos deram aos textos
de Adam Smith, do mesmo modo que a economia totalmente planificada da União Soviética,
igualmente extremista, nasceu da leitura que os bolcheviques fizeram das palavras de Marx.
Não admira que esse “fundamentalismo de mercado”, mais próximo da teologia que da
realidade econômica, também fracassasse.

O fim das economias estatais de planejamento central, assim como o virtual abandono da
meta de uma sociedade fundamentalmente transformada, que antes fazia parte das aspirações
dos desmoralizados partidos social-democratas, eliminou grande parte dos debates sobre o
socialismo que se ouviam no século XX. Esses debates estavam a certa distância do
pensamento do próprio Karl Marx, ainda que em grande parte fossem inspirados por ele e
conduzidos em seu nome. Por outro lado, Marx, por meio de seus textos, continuou a ser uma
força colossal em três sentidos: como pensador econômico, como pensador e analista da
história e como o reconhecido pai (junto com Durkheim e Max Weber) da reflexão moderna
sobre a sociedade. Não estou habilitado a expressar uma opinião quanto à sua persistente e
evidentemente séria posição como filósofo. Mas duas coisas, com certeza, nunca perderam
relevância para os nossos dias: a visão que Marx tinha do capitalismo como sistema
econômico historicamente temporário e a análise que fez de seu modus operandi —
continuamente expansionista e concentrador, gerador de crises e autotransformador.

II

Qual é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo soviético —
até agora a única tentativa de construir uma economia socialista — não existe mais. Por outro
lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da pura e simples
capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o
âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas
clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar
os governos nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de
mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade
econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo
cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise
mundial desde a década de 1930.

Nossa capacidade produtiva possibilitou, pelo menos potencialmente, que grande parte dos
seres humanos passasse do reino da necessidade para o da afluência, da educação e de opções
de vida antes inimagináveis, embora a maior parte da população do mundo ainda esteja por
entrar nesse domínio. No entanto, durante a maior parte do século XX, os movimentos e
regimes socialistas ainda atuavam essencialmente dentro do reino da necessidade, mesmo nos
países ricos do Ocidente, onde surgiu uma sociedade de afluência popular nos vinte anos que
se seguiram a 1945. Contudo, no reino da afluência, os objetivos de alimentação, vestuário,
habitação, empregos para garantir renda e um sistema de bem-estar social para proteger as
pessoas das vicissitudes da vida, ainda que necessários, já não constituem um programa
suficiente para os socialistas.

Um terceiro desdobramento é negativo. Como a expansão espetacular da economia global
ameaçou o meio ambiente, tornou-se urgente a necessidade de controlar o crescimento
econômico desenfreado. Há um óbvio conflito entre a necessidade de reverter ou de pelo
menos controlar o impacto de nossa economia sobre a biosfera e os imperativos de um
mercado capitalista: crescimento máximo e contínuo na busca do lucro. Esse é o calcanhar de
Aquiles do capitalismo. Não podemos, no presente, prever de onde partirá a flecha que lhe será
fatal.

Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e
não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico?
Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana?
Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu
pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas
integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o
homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é,
ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico”.

É absolutamente óbvio que grande parte do que ele escreveu está obsoleto, e que parte de
seus textos não é — ou não é mais — aceitável. É também evidente que seus textos não
formam um corpus acabado, mas são, como toda reflexão que merece esse nome, um
interminável trabalho em curso. Ninguém mais vai transformá-lo em dogma e muito menos
numa ortodoxia protegida por instituições. Isso certamente teria chocado o próprio Marx. No
entanto, devemos também rejeitar a ideia de que existe uma nítida diferença entre um
marxismo “correto” e outro “incorreto”. A forma de investigação de Marx podia produzir
diferentes resultados e perspectivas políticas. Com efeito, ela gerou esse resultado com o
próprio Marx, que imaginou uma possível transição pacífica para o poder na Grã-Bretanha e
na Holanda, e a possível evolução da comunidade rural russa para o socialismo. Kautsky e até
Bernstein foram herdeiros de Marx, tanto (ou tão pouco, como se prefira) quanto Plekhanov e
Lênin. É por isso que encaro com ceticismo a distinção que Attali faz entre um verdadeiro
Marx e uma série de subsequentes simplificadores ou falsificadores de seu pensamento —
Engels, Kautsky, Lênin. Era tão legítimo para os russos, os primeiros leitores atentos de O
capital, ver a teoria marxiana como uma maneira de fazer passar países como o deles do
atraso para a modernidade, através do desenvolvimento econômico do tipo ocidental, quanto
era também legítimo para o próprio Marx especular se uma transição direta para o socialismo
não poderia ocorrer com base nas comunidades rurais russas. Provavelmente, na verdade, isso
estava mais de acordo com a linha geral do pensamento do próprio Marx. A experiência
soviética não foi criticada porque o socialismo só pudesse ser construído depois que o mundo
inteiro tivesse se tornado capitalista, o que não foi o que Marx disse nem o que se pode
afirmar com segurança que fosse sua convicção. A crítica tinha uma base objetiva: a Rússia
era atrasada demais para produzir qualquer coisa que não fosse a caricatura de uma sociedade
socialista — “um império chinês vermelho”, como consta que Plekhanov teria avisado. Em
1917, esse teria sido o consenso predominante entre todos os marxistas, até mesmo entre a
maioria dos marxistas russos. Por outro lado, a crítica feita aos chamados “marxistas legais”
da década de 1890, que defendiam a ideia de Attali, segundo a qual a principal tarefa dos
marxistas consistia em criar um florescente capitalismo industrial na Rússia, também era
empírica. Uma Rússia capitalista liberal tampouco seria viável com o tsarismo.

No entanto, vários aspectos centrais da análise de Marx continuam válidos e relevantes. O
primeiro, obviamente, é a análise da irresistível dinâmica global do desenvolvimento
econômico capitalista e de sua capacidade de destruir tudo quanto se antepusesse a ele, até
mesmo aqueles elementos do legado do passado humano do qual ele próprio se beneficiara,
como as estruturas familiares. O segundo é a análise do mecanismo de crescimento capitalista,
pela geração de “contradições” internas — surtos infindáveis de tensões e soluções
temporárias, o crescimento levando a crises e mudanças, tudo produzindo concentração
econômica numa economia cada vez mais globalizada. Mao sonhou com uma sociedade
renovada constantemente pela revolução permanente; o capitalismo realizou esse projeto com
a mudança histórica, mediante o que Schumpeter, seguindo Marx, chamou de “destruição
criadora” permanente. Marx acreditava que esse processo acabaria por levar — forçosamente
— a uma economia enormemente concentrada. E foi isso que Attali quis dizer ao declarar
numa entrevista recente que o número de pessoas que decidem o que acontece nessa economia
é da ordem de mil, ou no máximo 10 mil. Marx acreditava que isso conduziria à supressão do
capitalismo, previsão que ainda me parece plausível, mas de uma forma diferente da
imaginada por ele.

Por outro lado, sua previsão de que tal supressão ocorreria mediante a “expropriação dos
expropriadores”, com um vasto proletariado levando ao socialismo, não se baseava em sua
análise do mecanismo do capitalismo, e sim em pressupostos apriorísticos separados. Na
melhor das hipóteses, baseava-se na previsão de que a industrialização produziria populações
majoritariamente assalariadas, como estava ocorrendo na Inglaterra da época. Isso podia ser
correto como uma previsão de médio prazo, mas não, como sabemos, a longo prazo. Depois da
década de 1840, Marx e Engels tampouco esperaram que o fenômeno gerasse a pauperização
politicamente radicalizadora em que depositavam suas esperanças. Como era óbvio para
ambos, não havia de modo algum amplos segmentos do proletariado que estivessem se
tornando mais pobres. Com efeito, um observador americano dos congressos proletários do
Partido Social-Democrata Alemão na década de 1900 observou que os camaradas que deles
participavam pareciam “um ou dois pães acima da pobreza”. Por outro lado, o evidente
crescimento da desigualdade econômica entre diferentes partes do mundo e entre as classes
não produz necessariamente a “expropriação dos expropriadores” a que Marx se referiu. Em
suma, as esperanças para o futuro eram vistas em sua análise, mas não derivavam dela.

O terceiro aspecto foi bem expressado pelo falecido sir John Hicks, laureado com o Nobel
de economia, que escreveu: “As pessoas que desejam atribuir um rumo geral à história
deveriam usar as categorias marxistas ou uma versão modificada delas, uma vez que não
existem muitas soluções alternativas”.

Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI,
mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira
aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos.''

domingo, 13 de julho de 2014

Uma nota sobre o uso dos vocábulos ''opressão'' e ''opressor''



 A linguagem é uma das ferramentas mais incríveis já criadas pelo ser humano: ela conseguiu levar-nos a um nível de integração inatingível para outras espécies. Como artifício ''geneticamente'' social, também, ela reflete as características de uma sociedade, suas relações de poder. Observe o leitor que o português de expressão brasileira reflete o machismo presente na nossa cultura desde a colonização: se há um grupo de jovens de ambos os sexos, nós os tratamos por ''eles'', ''os jovens''; se há um grupo de crianças cuja maioria absoluta é de menina, com uma minoria irrisória do sexo masculino, ainda sim chamaremos o grupo de ''os meninos''.  Mesmo palavras teoricamente válidas para os dois gêneros tem ''tom'' masculino (''O ser humanO'').

 Se a linguagem é um reflexo das relações de poder, nada mais lógico do que haver um grande uso/trabalho dela na política. George Orwell, escritor da distopia clássica 1984 - uma crítica sagaz ao totalitarismo, em especial à URSS sob Stalin -, descreveu o processo de ''novilíngua'', no qual segmentos do debate político se apropriam de certos termos e modificam seu sentido, e por mera repetição e uso desse termo no contexto desse debate e em publicações acadêmicas, ele acaba sendo sacralizado dessa maneira. É o que tentam fazer hoje com os próprios termos de esquerda e direita. Direitistas hoje tentam ressignificar o termo direita para ser "toda posição que defende menos intervenções do Estado". Essa ressignificação interessa porque daí qualquer ditadura ou regime totalitarista, como o salazarismo, a ditadura militar, o fascismo ou nazismo podem ser atribuídas à esquerda. E, sutilmente, isso tem funcionado! Muita gente cai nessa ressignificação do termo e acha que esquerda e direita realmente significam isso, e significavam na época desses ditadores.¹

 O assunto a que o título se refere é um exemplo de ''novilinguismo'' no seio da esquerda política, à qual pertenço. É bom lembrar que a transformação do significado das palavras não é necessariamente má: nos EUA, algum grupo mais à esquerda em algum momento decidiu que a liberdade era um valor muito caro para ser deixado à direita, desprezado e colocado em plano secundário, como era abertamente admitido por outros grupos mais à esquerda na Europa, favoráveis ao planejamento econômico. Esse grupo então começou a desconstruir o termo "liberal", ressignificando-o para alinhá-lo as ideias da esquerda. Possivelmente alguns intelectuais de peso aderiram à ideia por julgar que fazia sentido, e pronto, o sentido do termo estava modificado (Aqui, o termo tem significados diferentes: há o liberalismo econômico, o político e o moral - sendo que os dois últimos às vezes se confundem).²

 A palavra ''opressão'' é usada pelos setores da esquerda cultural para indicar uma inferiorização/''prejudiciação'' sistemática para com as minorias sociológicas²: negros, mulheres e homo/bi/transsexuais, por exemplo. Ela é estrutural, e não interpessoal. O que isso quer dizer? Que você pode até ver alguém sendo chamado de ''branquelo'' aqui, um homem sendo tratado como se pertencer ao sexo masculino fosse intrinsecamente depreciante ali (ambos casos de repressão) ou ver drag queens sendo tratadas com toda a finesse acolá (o contrário de uma anti-transfobia), mas é o padrão de beleza europeu - mais precisamente o escandinavo - que predomina no Brasil, é a mulher que recebe menos pela mesma quantidade e qualidade de trabalho, é de ''viado!'' que nós xingamos os coleguinhas desde cedo e por aí vai.³

 A existência dessas opressões está ligada à estruturação do poder e à hegemonia cultural na nossa história: o povo negro foi escravizado e submetido ao domínio de uma minoria branca europeia, e a nossa cultura quase sempre esteve ligada a um catolicismo conservador - além, é claro, da imposição dos valores militares da Ditadura, que influenciou toda uma geração. E não nos esqueçamos da minúscula participação das mulheres nos cargos de poder da política por todo esse tempo, causa e consequência de opressão das mesmas.

 Trata-se, portanto, de uma palavra que merece ser usada - só que, a meu ver, ela está sendo usada inadequadamente. Certa vez, eu discutia em um grupo se um homem tentar convencer seus amigos machistas a não mais sê-lo ao invés de deixar feministas fazê-lo era tão ''roubo de protagonismo do movimento'' - entenda-se aqui, por  ''movimento'', o feminismo - quanto comparecer a uma marcha das vadias ou postar fotos no facebook apoiando uma campanha como a ''Eu não quero ser estuprada''. Uma das moças afirmou que, ao dizer que era, eu estava sendo ''extremamente opressor''. Um comentário do facebook conseguindo ser tão... maléfico quanto a nossa estrutura social - que é mesmo demasiado machista (assim como eu e você somos  inconscientemente, embora não tanto; mas isso é papo para outro post).

A tal treta. Não está na íntegra, mas dá pra entender.
 Uma atitude parecida é a de chamar pessoas pertencentes a uma maioria sociológica (brancos, por exemplo) de opressores dos que pertencem à minoria sociológica equivalente, pelos privilégios que os primeiros possuem na nossa sociedade. Sim, eles têm privilégios, mas não são eles que oprimem, porque a opressão, como dito anteriormente, é sistemática, estrutural, e não interpessoal A repressão é interpessoal. (Exemplos de repressão: um conjunto de amigos chamando um deles de mariquinha, por apresentar algum comportamento feminino, ou um homem que manda a mulher lavar as louças e vai se deitar). A legislação e a cultura oprimem; indivíduos, não. Eu não consigo enxergar do outro modo, e só vejo fazê-lo como um potencial gerador de antimilitantes - pessoas que tinham vontade de se aliar aos movimentos sociais, mas se sentiram assustadas com o vocabulário usado por eles.

 Pegando gancho nessa crítica, eu gostaria de deixar outra: a ideologização excessiva de certos movimentos sociais. É comum ver neles a afirmação de que homens são incapazes de ser feministas (embora possam ser pró-feminismo), e brancos, incapazes de ser antirracistas 100% eficientes porque ambos, homens e brancos (dos dois sexos) são incapazes de enxergar todas as nuances da opressão que as mulheres e os negros, respectivamente, sofrem. Eu tendo a concordar com o argumento.

 O que me incomoda é que esses membros de movimentos sociais cheguem a acreditar tanto possuírem uma epistemologia privilegiada que repitam o (provável) erro de uma certa colega: em SP - se me lembro bem - a polícia só prendeu um rapaz que estava ''encoxando'' moças no metrô após o irmão de uma delas apresentar uma gravação em vídeo daquele fazendo-o, sendo que várias das tais moças já haviam-no denunciado. Essa colega jugou que fosse pelo machismo da polícia. Talvez tenha sido, mas devemos lembrar que nossa justiça se vale do princípio de que o réu é inocente até que se prove o contrário, e uma gravação em vídeo de um crime é uma ''prova'' muito mais consistente do que uma denúncia verbal. Tomemos cuidado para não deixar que os juízos de valor sobrepujem a visão dos fatos concretos.


1. Sobre direita e esquerda políticas: https://www.youtube.com/watch?v=h9LG3_ztAYY, https://www.youtube.com/watch?v=WpB387DH-mw, https://www.youtube.com/watch?v=5pPsAAnNHl0

2. ''Embora dados estatísticos mostrem que há mais mulheres do que homens no Brasil, elas ocupam menos cargos públicos e recebem salários menores do que os homens. Em contrapartida, há certas classes profissionais - como é o caso dos médicos ou dos advogados - que, apesar de serem minoria numérica no mercado de trabalho, têm um enorme prestígio social, o que significa um alto poder de mobilização na defesa dos seus interesses. Outras profissões, estatisticamente mais representativas, não tem tanta expressividade social'' (Coleção Sociologia Anglo, Volume 1, P.21). Essa expressividade social seria o princípio diferenciador entre maioria e minoria sociológicas: as mais dotadas da mesma seriam a maioria, e as menos dotadas, minorias.

3. Quem realiza jornadas duplas de trabalho? Quem é expulso de casa ou apanha na rua por sua orientação sexual? Quem teve sua cor de pele usada como xingamento nos jogos recentes da Copa?...



segunda-feira, 7 de julho de 2014

Indústria do terror, banalização da violência e suicídio de classe

Em nome da ''família'', da ''tradição'', da ''religião'', dos ''bons costumes'' e do ''anticomunismo'', fascistas na Europa e na América convenceram milhares de pessoas. Os integralistas eram sua vertente brasileira. 


 Com a popularização dos televisores e a busca de lucro por parte das emissoras, um subgênero de entretenimento teve, recentemente, origem: trata-se do programa policial sensacionalista. Todos conhecem o modelo: um apresentador briguento, falastrão e, não-raro, de uma ignorância humanística e científica absurda; várias notícias sobre crimes que, quase explicitamente e mesmo que ocorram numa taxa irrisória, tentam passar a impressão de que o ''cidadão de bem'' está sob ameaça constante e, às vezes, alguma figura humorística que materializa as opiniões e preconceitos da própria população. Não nos esqueçamos da pregação religiosa básica, sempre afirmando que estamos no ''fim dos tempos'', a um passo do Julgamento.

 Forçada pelo nosso sistema econômico a trabalhar o dia inteiro e muitas vezes possuindo uma educação e formação intelectual deprimente, a classe trabalhadora - que se encontra exausta demais para qualquer reflexão crítica da nossa realidade e para quem o teatro ou a literatura são entretenimentos impensáveis, quase impossíveis - cai como uma vítima de hipnose sob essa demagogia televisiva. Os apresentadores impressionam-lhes como profetas, e as afirmações destes, como opiniões que chega a ser imoral contestar.

 Pois bem: é este tipo de programa que eu chamo de ''indústria do terror'', e não sem razão. A i.d.t. oculta os motivos da existência de pobreza (sempre reforçando que o estado de perigo em que o ''trabalhador'' se encontra, ignorando a verdadeira violência que as camadas mais pobres sofrem com o descaso do Estado burguês: fome, inacesso à cultura, submissão aos exageros dos trogloditas policiais e a ausência de uma educação de qualidade e de possibilidades de vida que só são estão a disposição dos mais ricos, de quem a riqueza é muitas vezes o resultado da expropriação do trabalho alheio) e faz com que os trabalhadores tenham ódio de criminosos da categoria ''assaltante'', especialmente os menores de idade (e persiste - contra toda estatística HONESTA dos dados da criminalidade - que os crimes hediondos são a maioria entre os delitos cometidos por aqueles, numa descarada apologia dessa medida trágica que viria a ser a redução da maioridade penal).

 Tais coisas levam a classe a jamais contestar sua situação e também a apoiar medidas de extermínio de si mesma que visam a proteger a burguesia e a classe média alta daquilo que é, na maioria das vezes, resultado das atividades da primeira: os crimes que tem por causa a desigualdade econômica. Simultaneamente, o contato constante com os piores casos possíveis de violência retiram a sensibilidade do espectador quanto à mesma - o que, de certa forma, ''naturaliza'' e legitima todo tipo de agressão e crueldade.

 Não nos enganemos, companheiros. A indústria do terror - essa versão moderna dos autos da fé medievais, onde centenas (talvez milhares) eram torturados e mortos perante uma multidão vibrante, que não possuía quaisquer outras atividades de lazer senão as missas - é uma arma da elite contra nós. É uma tentativa de demonizar aqueles que acabaram por abandonar os meios dignos de sobrevivência, é verdade; mas que jamais o fariam se a situação não quase os forçasse a isso. Ela é uma forma de destruir a classe trabalhadora por dentro, inviabilizando nossa luta por aquilo que nós é direito: uma vida digna.

 Não quero inocentar criminosos aqui, dizer que são santinhos; não são. Sempre há alternativas ao crime. Mas faço questão de reiterar: vivemos na sociedade onde mesmo os deuses das grandes religiões sucumbiram perante o todo-poderoso dinheiro. Uma sociedade onde, para se comer bem, morar bem, ter boa imagem pública ou mesmo conquistar a pessoa amada, é exigido o tempo todo que se tenha dinheiro dinheiro dinheiro dinheiro dinheiro. A possibilidade de se concretizar enquanto pessoa humana, culta e feliz já foi ceifada da maior parte da nossa população simplesmente ao nascer. As nossas políticas  de Estado, tipicamente neoliberais, geram uma grande massa de trabalhadores pobres cuja consciência ingênua (uma vez que sua educação é sofrível, ausente de qualquer estímulo ao pensamento crítico) é tomada por pastores, padres e líderes desonestos que só sabem se ater ao reacionarismo, inviabilizando mudanças há muito necessárias.

 Essa situação perigosa, que combina o fundamentalismo religioso e um apoio estrito ao aparato policial/militar de violência, é um ovo de serpente. Tratemos de combatê-la enquanto há tempo.

 Gostaria de sugerir alguns materiais para leitura e visualização:
https://www.youtube.com/watch?v=2n4Och9XnBY
https://www.youtube.com/watch?v=r4sfnf0xtNI
https://www.youtube.com/watch?v=n9Xo4pS_hoc
https://www.youtube.com/watch?v=Lle8mzAOkPE
http://colunastortas.wordpress.com/2013/12/08/medo-liquido-zygmunt-bauman-uma-resenha/
http://bertonesousa.wordpress.com/2013/01/26/da-social-democracia-ao-neoliberalismo/

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Os irracionais conservadores, uma vez mais



É incrível a quantidade de gente que se meteu a fazer comentários do tipo ''destruição da família brasileira!'', ''imposição da cultura gay!'', ''e se as crianças virem?!'' ou similares nessa foto.

Eu queria saber em que diabos a existência de uma forma de relação afetiva diferente da padrão poderia destruir famílias. Sério. É um casal do mesmo sexo se relacionando, ponto. Não vão obrigar ninguém a fazer igual, não vão proibir ninguém a fazer diferente. Não é imposição de ''gayzismo'' ou ''cultura gay'' porque nossa cultura é predominantemente ''hétero''. Olhem nossas novelas, músicas, poemas, esportes e tudo mais. O que há de expressão de homo/bi/transsexualidade é ínfimo, imperceptível.

A única coisa que essas cenas nas novelas ou filmes causam é uma desmistificação do fenômeno, preparação da sociedade - especialmente as gerações jovens e vindouras - para que não reconheçam essas minorias como criaturas de outro mundo, e assim deixem de apresentar preconceito. As nossas crianças não serão ''influenciadas a se tornarem gays'' por coisas tão ínfimas, e ainda que tal pudesse acontecer (e a genética e neurologia cada vez mais dizem que não, revelando uma base biológica para a orientação sexual), a imensa superioridade quantitativa de expressão hétero com a qual essas crianças terão contato as faria ser heterossexuais - na verdade, se orientação sexual fosse coisa de ''influência'', os homossexuais não existiriam, visto que nasceram e foram criados por pais héteros, tendo contato com vizinhos e parentes majoritariamente héteros.

Eu não costumo escrever textos desse tamanho, a menos que algo me irrite profundamente. E em ano de eleição, saber que jamantas conservadoras do tipo que fez o que eu falei acima vão decidir os principais cargos do país me deixa profundamente irritado (e decepcionado). Fica o pedido: se você é um desses malafainhas, reveja suas opiniões. Raciocine.